sábado, 12 de dezembro de 2009

Zangaram-se


Zangaram-se. Era regra zangarem-se por coisas pequenas, coisinhas sem importância que nem ao demo lembravam, mas nem sempre assim era.

Ele vinha da faina do mar e tinha por costume não limpar as botas antes de entrar em casa. Laurinda já o alertara várias vezes para que ele as descalçasse à entrada, mas o seu homem entrava com aqueles botarrões enormes a toldar-lhe os movimentos numa estranha dança, própria de quem se move em câmara lenta gravitando numa paisagem lunar, ignorando-lhe os avisos.

Laurinda olhava o chão sujo a limos e lama marinha ao mesmo tempo que lhe lançava umas boas centenas de pragas por minuto como se estivesse possuída por outro alguém que não ela. Quem a visse não julgaria que uma senhora a entrar nos setenta, poderia debitar tanta imprecação, tal era o enfado que aquele cenário lhe produzia.

Ele, já na casa dos setenta há muito que se reformara, mas ainda tinha forças, para, de quando em vez, aventurar-se na apanha da amêijoa.

Sempre tivera o mar por companhia...desde os doze anos que já o tratava por tu, por necessidade e por amor à faina, e mantinha ainda o orgulho e a altivez suficientes para não se deixar render pela idade e juntar-se aos “velhotes” como dizia ele, que passavam intermináveis tardes na jogatina.

Descalçou as botas no quintal e pôs-se a limpá-las enquanto ela continuava a massacrá-lo entre dentes, numa espécie de murmúrio, produzindo nele uma raiva surda, contida, para logo, como um raio, atirar-lhe com as botas ainda enlameadas deixando-a sem palavras e sem forças para ripostar.

Ele saía à pressa enfurecido, ela chorava “baba e ranho” todo o santo dia, lastimando a sua sorte.

Voltava ao sol posto a horas da “janta”. Nunca Laurinda deixara de preparar-lhe as refeições; desde jovem, quando casara, à beira dos dezassete anos, que sempre assim fora, estava-lhe nos genes ou nas aprendizagens dos seus tempos de criança.

Apenas se lhe reconhecia uma particularidade...quando estavam zangados, ela não o acompanhava às refeições. Deixava-o sozinho à mesa mastigando vorazmente, enquanto ela, deitada na cama, ainda ressentida pela agressão, esperava que lhe trouxessem uma palavra, um pedido de desculpas, mas ele mantinha-se inflexível e frio ignorando a sua existência.

Laurinda não comia; durava três dias a greve de fome até que ele lhe dirigisse a palavra ou um olhar mais terno em jeito de desculpa.

Algumas vezes, bastava que ele lhe acenasse com um perfume “Tabu” ou “Madeiras do Oriente”, que ela tanto adorava, para lhe conquistar um sorriso de orelha a orelha e fosse reposta a paz.

Fernando Barnabé

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