quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Reflexão

Há um tempo para pensar o verdadeiro significado da vida, a nossa verdade face à vida, e, é inevitável que nesse exercício de pensar, surja também à mente o significado da nossa finitude, de "sermos seres para a morte".

Mergulhar bem fundo dentro de nós traz à tona todos os sonhos, os realizados, os que continuam sendo utopia e os que se perdem pelo caminho pelo inelutável querer daquilo a que muitos chamam, fado, destino, a vontade divina... mas não será todo o nosso existir uma sucessão de acasos, uns mais significativos que outros?

Poderá ser fácil erigir um sonho irrealizável? Penso que sim; basta que para isso, uma conjugação de forças, independentes da nossa vontade, se cruzem e se enlacem à volta desse objectivo, mas o contrário também é verdade; num ínfimo segundo podemos ver extinguir-se as nossas muralhas, os nossos anseios, a nossa própria vida e a dos que mais nos são queridos. Haverá coerência no nosso fado? Vivemos segundo o que a nossa mente arquitecta ou viajamos ao sabor de uma vontade maior que nos planeou ou vai planeando o trajecto?

Quantas vezes, mesmo sentindo que a nossa missão enquanto aqui permanecemos, se nos afigura válida e coerente, carregamos connosco esse sentimento de incompletude, pressentindo que ali mesmo, ao alcance de um golpe de asa, se encontra o verdadeiro sentido do existir ou a verdadeira afirmação da nossa natureza e competências? Como podemos dar um passo na sua direcção se essas imagens prometeicas que a nossa psique constrói mais parecem uma amalgama de pensamentos desconexos mascarados de tons de liberdade e autonomia, qual devaneio a que nos arraigamos como naufrago à sua tábua?

E onde está a resposta? na fé que porventura transportamos? ou, acreditando simplesmente, que pela nossa vontade e determinação, pelo poder do pensamento positivo, o caminho ser-nos-á inevitavelmente revelado?

Fernando Barnabé

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Confissão

- Promete-me que depois não me farás perguntas... eu também não te perguntarei nada. Disse ele, juntando as mãos trémulas e húmidas, numa espécie de prece agonizante e aflita.

Ela olhava-o lívida. Nunca sentira nas suas palavras tamanha sensação de desespero, de furiosa contenção. Maria balbuciou algo incompreensível enquanto sentia uma corrente gelada percorrer-lhe o corpo frio.

- Lembras-te daquela tarde em que o sol se afundava lentamente no mar e tu entre ternuras e afagos me deste a notícia? Ela esboçou um sorriso que mais parecia um esgar…acenou que sim com a cabeça pressentindo algo terrível. Lembrava-se perfeitamente desse fim de tarde.

- Lembro-me de te ouvir dizer: -Trago uma flor dentro de mim Ricardo, a nossa flor…Esse momento foi como uma bala que se estilhaçou no meu peito... gritei àquela imensidão de mar que quase me parecia um deserto, mas tu não me decifraste o grito. Doeu, doeu muito Maria, mas libertaste-me e libertaste o meu segredo, a minha omissão... devo-te isso... Disse ele, agora mais calmo, como se uma súbita paz lhe percoresse as veias e prosseguindo num assomo de coragem: - Essa flor, a flor que trazes no ventre Maria, não fui que a reguei...a minha fonte há muito que esgotou...sequei Maria, sequei...

Ela olhou-o em jeito de súplica ele afastou-se lentamente, cabisbaixo; queria chorar um oceano de lágrimas, mas até essas teimavam em aliviar-lhe a alma.

Fernando Barnabé

sábado, 26 de dezembro de 2009

Os versos que te escrevi

Apaguei agora mesmo os versos que te escrevi,
Já não lembro, já não quero, pensar que pensei em ti,

Porque se penso que és tu, essa centelha que almejo,
Logo escuto o coração, dizer-me que é vão desejo.

Nos amores não tenho escolha, toda a vida foi assim,
Antes mesmo que eu te queira, alguém te roubou de mim.

É fado? É sina? não sei, talvez os astros, que importa?
Sei que um dia chegarás, sem bater à minha porta.


Fernando Barnabé

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Porque é Natal?


Gelava-te o frio no corpo e no sangue
Ao percorreres a cidade em busca de guarida,
De um arremedo de casa.
Longe vai o tempo em que tinhas um tecto de verdade,
Uma cama e uma mesa, um lar, uma família...
Agora, vagueias como um pária derrotado pela vida,
Buscando no lixo o que ninguém quer, erguendo a mão a uma esmola,
Ou roubando, para que não se te acabem os dias…
Não tens rumo nem caminho, mas é tua a cidade,
E todas as estrelas do céu que contemplas,
Quando contra o peito aconchegas o urso de peluche que te ficou do passado.

Fernando Barnabé


domingo, 20 de dezembro de 2009

A nossa droga


Adoeceram porque alguma moléstia crónica lhes tinha tomado as veias...era a sua droga, companheira da pressa dos dias e das insónias nocturnas. Parecia inócua e, por assim parecer, completamente irresistível e fatal.

Ela sorria por vê-los prostrados, sem forças e sem alento para continuar a caminhada. Tinha-os vergado pela força do seu inexorável encanto.

Como são estúpidos estes humanos, pensou. Mas em terra de cegos quem tem um olho é rei, lá diz o ditado. Uma casa perto do mar, ou do campo, de preferência com piscina e é vê-los a estrebuchar diariamente, ano após ano na ânsia de realizarem o sonho do Ter.

Eu não exijo em demasia... apenas pretendo que continuem a lutar pelo efémero. Compitam, lutem, matem, vocês são jovens, têm força e resistência. Corpos e mentes viçosas... preciosa matéria para modelar…que belas presas e que grande banquete!

Sei que vocês conseguem… mostrem aos vossos vizinhos, aos vossos amigos e família que são gente bem sucedida e competente. Vêem, só passaram dois anos e a casa dos vossos sonhos aí está, reluzente. E o carro?…magnífico topo de gama! e o LCD na cozinha e no WC...perfeito...que felicidade incontida!!! Ah, mas agora vejo, não têm vista para o mar e falta-lhes ainda a piscina? Então? Porque esperam? Tracem já um plano, pensem num empréstimo, não vão poder pagar?... Disparate; claro que vão, vejam só...comem uma sandes ao almoço, reduzem os gastos em idas ao cinema, nos livros, nos brinquedos para as crianças e rapidamente a vossa qualidade de vida será superior à do vizinho...é garantido meus caros, mais dois anitos e... prova superada!!!

Como? O João Acelerado teve um AVC...não me digam?...Mas ele só tinha 27 anos! A Maria da Mecha atirou-se da ponte? Não acredito, mas ainda ontem estive lá em casa,via-a beber uns copos, parecia feliz, nunca pensei que fosse capaz...

Quer dizer então que não vão pedir o empréstimo? Não querem mais lutar pelos vossos sonhos? Não faz mal, meus caros, não faltarão seguidores fanáticos a perseguir-me até à morte, porque eu vivo e viverei sempre nas vossas veias nas vossas mentes, não me conseguirão extinguir; eu sou o DESEJO, sou a vossa alegria e o vosso martírio e crescerei perene nas vossas consciências até ao dia em que deixarem de desejar.

Fernando Barnabé

sábado, 19 de dezembro de 2009

Gelava-me o silêncio


Não consigo abraçá-lo...penso que nunca irei conseguir. Não sinto vontade de o fazer, e, se o fizesse, violentava-me. Não trago guardadas na memória nem abraços nem ternura nem afecto...ele nunca os soube transmitir, nem tão pouco percebeu o quanto me faziam falta.

Lembro-me que ainda muito pequenina ia para casa dos vizinhos brincar com as meninas e meninos da minha idade e nem calcula como me sentia quando recebia um beijo ou um piropo do Sr. Zé o pai da minha melhor amiga, a Mafalda. Aquilo aquecia-me a alma sabe...depois, nem imagina quanto me custava o regresso a casa. Gelava-me o silêncio da minha mãe que tinha adoptado há anos uma postura de falso contentamento...gelava-me o peso das horas e dos dias, ao vê-la encarcerada naquele sorriso dissimulado e falso com cheiro a mágoa e desencanto. Só ele parecia não perceber que por detrás daquela máscara havia alguém que reprimia a sede de liberdade e a vontade imensa de sentir-se outra vez mulher. Como ela sofria meu Deus...

Era triste presenciar os diálogos monocórdicos em que ele tinha sempre razão; as desculpas pelos dias sucessivos em que nos deixava a sós desesperadas; era triste e sufocante ter que calar a minha voz pequenina quando desejava dizer-lhe que o odiava com todas as minhas forças e que morresse de vez.

É por isso que não me apetece dar-lhe um abraço compreende? Se o perdoei? Sim, penso que sim, não lhe guardo rancor...Sei que também ele não foi bafejado pela sorte, pela fortuna que é sentir calor humano à nossa volta... sentir que somos gostados...para mim, essa é a riqueza maior, e, quando não a temos em pequeninos, mais tarde, fazemos tantos disparates...Olhe bem para mim, o que lhe pareço?
Sabe...Sinto-me como se fosse um pássaro sem ninho, uma órfã, uma sem-abrigo,uma desajeitada nestas coisas dos afectos... quero sempre mais, como se eu própria fosse um saco roto,sem fundo, sempre em perda, sempre com medo da rejeição...

Quando vou experimentar essa sensação de segurança interior que nunca me foi dada conhecer? Quando me vou amar pelo que sou? Pelo que construi com a vontade e perseverança de uma sobrevivente que só precisa que a amem?

Eu sei, eu sei...li algures que onde existe o medo não pode haver amor...mas é insuportável ter que arcar com esta angústia que me persegue e com o peso desta máscara para o resto da minha vida como fez a minha mãe... Não quero mais hipotecar o tempo que me resta, quero sentir-me inteira, quero ser feliz...

Desculpe-me as lágrimas...não consigo segurá-las, não consigo...

Fernando Barnabé

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

O Álibi


- “Isso até nem é um grande problema. Se vier a acontecer, tenho um bom álibi.” Foi essa a sua resposta. Perguntei-lhe surpreso a que álibi se referia e fiquei nesse momento num estado de alguma inquietude. Fixei-me na sua expressão facial. Da boca desprendia-se um sorriso macabro de quem tem em mente uma ideia diabólica há muito engendrada; do olhar, sinais de indisfarçável provocação.

Tentei não reagir de imediato e esbocei um sorriso na tentativa de dissimular o assombro. O assunto de que tínhamos estado à conversa, era sério, demasiado sério para ser tratado com leviandade. Tinha à minha frente alguém gravemente perturbado e o caso exigia atenção redobrada.

O discurso era ardiloso, enigmático, ziguezagueante, feito de omissões e incongruências e aquele esgar; sim, porque não era na verdade um sorriso, encerrava alguma malignidade; aquela malignidade travessa a precisar de um açoite.

“ Posso sempre dizer que me piquei numa agulha”. E o esgar acompanhou a frase, deixando perceber uma qualquer perversidade inconsciente. Percebi no momento que não era apenas o prazer que a movia. O seu mundo hedonista estaria subjugado a uma necessidade maior que jazia funda e insondável, como metástase galopante e invisível.

Fitei-a, com um olhar grave e perguntei-lhe se tinha consciência do que me estava a dizer.
“ Claro que tenho, ou pensa que sou estúpida”. “Não vou nem quero prescindir dos meus desejos e fantasias sexuais; tenho prazer no que faço e como o faço” prosseguiu.

- "E a sua família? Os seus filhos e pacientes que têm de si uma imagem sem mácula de mãe e de cuidadora? Não são importantes para si? Não a preocupa o facto de que algo grave lhe possa acontecer? De os deixar sós e indefesos porque não lhe dá prazer ter relações protegidas?" Perguntei.

A cabeça altiva e o olhar provocador esconderam-se, ofuscados por alguma réstia consciente, quem sabe se ateada pelas minhas derradeiras palavras. Ficou imóvel por alguns momentos; momentos que senti eternos e indescritíveis. O tronco dobrava-se-lhe sobre o regaço e o seu corpo elegante e belo parecia definhar a um ritmo alucinante. Sentia-a agonizar como besta atingida por letal veneno.

Os olhos em alvo, agora mortiços pareciam expressar uma dor antiga - a dor de uma alma condenada.

Não interrompi o momento, apenas fiquei a olhá-la mudo e quieto observando incrédulo a sua metamorfose. Depois, abracei a sua dor, e, no mesmo instante, senti-me envelhecer pelo peso desmedido daquela "maldição".


Fernando Barnabé

domingo, 13 de dezembro de 2009

O Ti Manel Filósofo


Ela gostava de encontrar explicações para tudo; por isso a frase, "não há acasos" defini-a bem. O mais difícil, segundo ela, era conhecer-se, perceber o porquê daquela atração fatal pela descoberta dos mistérios da vida e da sua própria existência.

A vida era um martírio porque nela pensava obsessivamente. Escalpelizava ao pormenor as mais diversas e possíveis conexões entre situações já vividas e as que no presente experimentava, tentando encontrar padrões que a ajudassem a compreender a sua vida interior, mas, em vez de experimentar alívio, cada vez mais se adensavam as dúvidas e uma sensação de perda e inutilidade entristeciam-lhe os dias.

Bem lhe dizia o Ti Manel: - "Isso de pensar muito menina não a leva a lado nenhum, deixe que a vida aconteça”. De nada lhe valia o conselho, antes se eriçava no seu pedastal de universitária culta que há muito renegara o saber popular. - "O que sabe você da vida Ti Manel? As pessoas fizeram-se para pensar, porque isto de viver, não é só respirar, dar vazão aos instintos, comer e beber e repetir a dose todos os dias até ao último suspiro; assim a vida não tem graça Ti Manel. Olhe p`ra si, levanta-se de madrugada, faz o farnel, vai passear as ovelhas e ao fim do dia regressa a casa sem nada de novo para contar, a não ser que passou mais um dia e que a “Bonita” continua a ser a menina dos seus olhos. Diga-me lá Ti Manel, essa vida assim tão monótona, não o põe doente? Não gostaria de ir para a cidade, conhecer gente, quem sabe tentar outra profissão, você que tem tanto jeito para os trabalhos manuais? Você é feliz assim Ti Manel?

Ele olhou-a com ternura, a mesma que trazia nos olhos quando a sua “Bonita” paria e respondeu-lhe com a sabedoria da alma:
- A menina conhece um tal de Agostinho?
- Quem? O da mercearia, o filho da Ti Gertrudes?
- Não minha filha, aquele velhote de barba que aparecia na televisão, que era filósofo ou coisa parecida.
- Já sei Ti Manel, o Agostinho da Silva.
- Pois minha filha, esse senhor é que tinha razão e eu já há muito tempo que lhe conhecia a frase.
- Mas então que frase é essa? Conte-me lá...Não me diga que também deu em filósofo...
- Não sou filósofo coisa nenhuma menina, só sei é que não faço planos para a vida, porque desde sempre percebi que a vida já mos tem preparados. É com esta certeza que caminho todos os dias para o monte levando o meu farnel e as minhas “filhinhas”; não lhe chame aceitação ou tão pouco resignação... é que eu sou feliz, muito feliz assim menina!

Fernando Barnabé

sábado, 12 de dezembro de 2009

Zangaram-se


Zangaram-se. Era regra zangarem-se por coisas pequenas, coisinhas sem importância que nem ao demo lembravam, mas nem sempre assim era.

Ele vinha da faina do mar e tinha por costume não limpar as botas antes de entrar em casa. Laurinda já o alertara várias vezes para que ele as descalçasse à entrada, mas o seu homem entrava com aqueles botarrões enormes a toldar-lhe os movimentos numa estranha dança, própria de quem se move em câmara lenta gravitando numa paisagem lunar, ignorando-lhe os avisos.

Laurinda olhava o chão sujo a limos e lama marinha ao mesmo tempo que lhe lançava umas boas centenas de pragas por minuto como se estivesse possuída por outro alguém que não ela. Quem a visse não julgaria que uma senhora a entrar nos setenta, poderia debitar tanta imprecação, tal era o enfado que aquele cenário lhe produzia.

Ele, já na casa dos setenta há muito que se reformara, mas ainda tinha forças, para, de quando em vez, aventurar-se na apanha da amêijoa.

Sempre tivera o mar por companhia...desde os doze anos que já o tratava por tu, por necessidade e por amor à faina, e mantinha ainda o orgulho e a altivez suficientes para não se deixar render pela idade e juntar-se aos “velhotes” como dizia ele, que passavam intermináveis tardes na jogatina.

Descalçou as botas no quintal e pôs-se a limpá-las enquanto ela continuava a massacrá-lo entre dentes, numa espécie de murmúrio, produzindo nele uma raiva surda, contida, para logo, como um raio, atirar-lhe com as botas ainda enlameadas deixando-a sem palavras e sem forças para ripostar.

Ele saía à pressa enfurecido, ela chorava “baba e ranho” todo o santo dia, lastimando a sua sorte.

Voltava ao sol posto a horas da “janta”. Nunca Laurinda deixara de preparar-lhe as refeições; desde jovem, quando casara, à beira dos dezassete anos, que sempre assim fora, estava-lhe nos genes ou nas aprendizagens dos seus tempos de criança.

Apenas se lhe reconhecia uma particularidade...quando estavam zangados, ela não o acompanhava às refeições. Deixava-o sozinho à mesa mastigando vorazmente, enquanto ela, deitada na cama, ainda ressentida pela agressão, esperava que lhe trouxessem uma palavra, um pedido de desculpas, mas ele mantinha-se inflexível e frio ignorando a sua existência.

Laurinda não comia; durava três dias a greve de fome até que ele lhe dirigisse a palavra ou um olhar mais terno em jeito de desculpa.

Algumas vezes, bastava que ele lhe acenasse com um perfume “Tabu” ou “Madeiras do Oriente”, que ela tanto adorava, para lhe conquistar um sorriso de orelha a orelha e fosse reposta a paz.

Fernando Barnabé

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

O brinquedo mais bonito do mundo


Custava sete e quinhentos o brinquedo mais bonito do mundo. Tinha desenhado no seu interior circular um campo de futebol com jogadores de duas equipas, eternas rivais, duas balizas minúsculas, uma bola muito pequenina e “milhares de espectadores”. Um vidro, como se fosse uma cobertura ultra moderna, que hoje se vê por esses campos fora, cobria todo o recinto. Um círculo tão pequenino mas que a imaginação fértil dos putos que faziam da rua o seu local de folguedo transformava num cenário mágico e vibrante.

Ao Manel, na magreza dos seis anos, o brinquedo mais bonito do mundo, cabia-lhe na palma da mão e, por algumas vezes, sempre que os amigos lhe emprestavam o círculo fantástico, ele lá tentava levantar a assistência com golos de belo efeito na baliza dos verdes. Era sol de pouca dura…o jogo era breve, não havia tempo para goleadas, porque o brinquedo tinha um só dono e era disputado por muitas mãos que queriam fazer o gosto ao pé, ou melhor, à mão…sim, porque naquele jogo de futebol, os golos marcavam-se com as mãos, ou se preferirem, com a mestria dos dedos, e olhem, que alguns dos pirralhos, poderiam ombrear com o Cristiano Ronaldo em técnica e virtuosismo.

Numa bela noite urdiu um plano para poder ter só para si o brinquedo mais bonito do mundo…já tinha feito várias tentativas mas sempre mal sucedidas; a mãe não estava pelos ajustes…

- ”Sete e quinhentos? Queres sete e quinhentos…para quê? Tu sabes o que custa a vida? No meu tempo nem cinco tostões o meu pai me dava para rebuçados… tu estás é com febre…nem penses nisso…que pouca vergonha…sete e quinhentos…era a primeira bola a sair do saco”.

Mas não ficava por ali a ladainha…

-”O teu avô, uns dias antes do meu casamento não me quis comprar os sapatos que eu gostava por uma diferença de cinco escudos e tu querias agora que eu te desse sete e quinhentos para comprar uma porcaria que não tem utilidade nenhuma…tem mas é juízo?”

O plano era mais que perfeito, não iria falhar, estava tudo calculado ao milímetro; mas ele sabia que tinha que ser muito bem executado. Ensaiou várias vezes no seu quarto o que iria dizer e como iria fazer...por isso, apesar do nervosismo que o invadia, no dia seguinte, quando saiu às compras com a mãe, estava totalmente confiante. O brinquedo mais bonito do mundo iria finalmente ser seu...

Enquanto a mãe se ocupava em regatear ao tostão apenas o básico que lhes garantisse o sustento, Manel, tentava avistar a vendedeira dos brinquedos mais bonitos do mundo por entre uma mole imensa de gente que disputava postas de bacalhau demolhado que diziam estar a bom preço. Esgueirou-se e foi ao encontro de uma senhora de idade que trazia consigo pelo menos meia dúzia dos tais brinquedos. Sorriu-lhe…ela devolveu-lhe o sorriso.

-“Então o menino vai querer alguma coisa minha?” Perguntou.

Ele sentia-se gelar por dentro, as mãos e o corpo tremiam-lhe e percebeu então que o plano, tão ardilosamente preparado, afinal não era assim tão fácil; tinha que ser expedito e deixar-se de lamechices… estava a lutar pelo brinquedo mais bonito do mundo…disse-lhe então:

-“Está a ver além aquela senhora vestida de azul? Não…não é a do lado esquerdo…olhe leva agora uma posta de bacalhau demolhado na mão…está a vê-la?”

Pareceu-lhe ter sido convincente…porque nem pestanejara, nem os costumeiros tiques na vista o denunciaram…ia dar certo, pensou.

- “Sim, estou a vê-la…até é minha freguesa, já me tem comprado agulhas e carros de linhas…” disse-lhe.

Manel, ainda mais confiante com a deixa, prosseguiu:

- “Pois olhe minha senhora, a minha mãe manda dizer que me dê esse brinquedo que ela já cá vem pagar-lhe…

E, sem lhe deixar tempo para a resposta, adiantou:

- “Custa sete e quinhentos não é? “.

-“É sim menino, leve lá o brinquedo…eu ando por aqui, não me afasto muito”.

- “Não se preocupe que já lhe venho trazer o dinheiro”, disse-lhe, morto de contente pela engenhosa artimanha. Faltava agora o mais difícil, convencer a senhora sua mãe...essa sim, uma oponente à altura...mas o seu plano era de todo infalível...

Enquanto não chegava até ela lá foi marcando uns golitos aos verdes, mas não contente com o feito, parou no caminho, para melhor esgrimir os seus dotes de goleador. Estava nas nuvens, não ouvia nem via ninguém à sua volta, o melhor brinquedo do mundo pertencia-lhe e a felicidade era tanta que o seu coração batia ao ritmo da paixão.

Tão embevecido estava que não deu pela presença da mãe. Esta olhava-o de cima abaixo, ar inquisidor, ao mesmo tempo que, com o pé num ritmo frenético, castigava as pedras da calçada em jeito de quem se pergunta onde teria desencantado o petiz aquela coisa circular e inútil. Surpreendido tentou preparar a defesa.

- “Conheces aquela senhora a quem compras agulhas e linhas? deu-me este brinquedo e disse-me que tu lhe podias pagar a prestaçõ...”

Foi a última palavra que lhe deixou pronunciar porque o levantou por uma orelha, levando-o até à vendedora que ainda se encontrava a uns bons cem metros. Sentiu que todos os olhares se fixavam nele, como se um degenerado fosse.

- “Crucificai-o, crucificai-o”, julgou ouvir gritar a multidão, tal era o seu temor.

Fez-lhe devolver o melhor brinquedo do mundo. Cabisbaixo não conseguiu encarar a vendedora que lhe soergueu a face e lhe disse com ternura:

-“Eu dava-to meu filho, mas a minha vida está tão difícil... olha meu menino, não chores, um dia, hás-de ter um novinho em folha como este”.

Manel olhou a mãe de relance pressentindo no seu olhar vítreo sinais de ódio e de raiva ao mesmo tempo que da sua face um estranho esgar se desprendia.

Estaria a lembrar-se dos seus sapatos de casamento?


Fernando Barnabé

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Mataste o meu sonho de amar...

Mataste o meu sonho de amar oh mar,
Agora é de negro que te contemplo,
Eterno e cruel amante,
Dor que no peito trago,
Ferida de sal em mim plantada.

Fernando Barnabé

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Maria Gervásia


Oh Maria Gervásia, então ele arreou-te outra vez melher?...olha-me p’ra essa cara... pobrezinha...tu já viste como ele te deixou a cara…eu não aguentava minha filha...vai à GNR melher, é vou contigue, na te dexes ficar outra vez, que ele qualquer dia...qualquer dia dá-te alguma que te mata.

Anda cá que te ponhe aí uma pomadinha e lavo-te essas ferida...olha que isse está mesmo fê. Mas porque é que tu na fazes quexa dele? Sabes há quanto tempo ele te maltrata?…vai p'ra mais de vinte anos… sim, porque quando é vim morar p’ra qui já ele te dava das valentes. Se o meu Xique se atrevesse a fazer-me isse, dava-lhe com um tache na cabeça, ó se dava.

Na me venhas com a desculpa de sempre que ele só te bate quando bebe…ele que se vá tratar, porque o teu Capitolino, já nem um homem parece... aquile é mais uma besta, o que tu tens p'ra li. Ainda te trata pior que ao jerico...as tunas de porrada que ele lhe dá melher...é de meter dó...coitado do animal. Sabes o que eu gostava? Era que um dia se fizesse justiça e ele lhe desse um coice tan grande que haveria de lembrar-se das dores que tu passas com ele...olha, e Deus queira que seja nas mãos...a ver se te deixava sossegada por uns tempo...

Quando é que tu te impões melher...quando é que tu lhe dás um berre?.

Já viste que ele só te tem como criada...lavas-lhe a roupa, passas-lhe a ferre, fazes-lhe a comida, o farnel, ajudas no campo, obriga-te a abrir as pernas... e tu lá vais deixande que ele à laia de porco faça o serviço, sem um beje, sem um carinho...cada vez te vejo mais triste e resignada pobrezinha...

Se eu tenho a minha alma aqui a doer-me, como terás tu a tua... Coitada de ti Gervásia...anda cá filha...deixa-me dar-te um abraçe.


Fernando Barnabé




Associação Portuguesa de Apoio à Vítima

A APAV, Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, é uma organização sem fins lucrativos fundada em 1990. A APAV tem como objectivo e actividade promover e prestar informação, protecção e apoio às vítimas de crime. Os serviços prestados são gratuitos e confidenciais.

Morada: Rua do Comércio, 56-5º
1100-150 Lisboa
Telefone: 21 888 47 32
E-mail:apav.sede@apav.pt
Website:http://www.apav.pt/

O Mar e Tu

O (a)mar sempre foi fonte de inspiração...

Veneza


E eu vi que a cidade nascia das águas,
que as casas nelas se debruçavam em venerável pose,
E que o Mestre pintara as ruas de azul,
onde deslizavam elegantes barcos, por hábeis mãos movidos.
Vi que as gentes respiravam amor e acreditavam em milagres, mesmo ouvindo a alma da cidade em constante súplica.

Fernando Barnabé

Robin Hood


Lembro-me do tempo em que eu era Robin Hood, o meu grande herói de infância. Colado à televisão a preto e branco, a minha mente vagueava por entre bosques e castelos ao ver aquela figura mítica, rebelde e jovial, que roubava e desafiava os ricos para dar aos pobres. Fascinava-me o seu perfil libertador e carismático, a tal ponto, que no meu sótão, era ver um enorme arsenal de espadas, arcos e flechas, que distribuía pelos restantes pirralhos de rua, incansáveis companheiros de luta contra as injustiças que o malvado do Xerife de Nottingham infligia aos plebeus.

Organizávamos torneios medievais e brincávamos aos bons e aos maus num beco estreito que era mais do que isso, era floresta de Sherwood, era fortaleza, era tudo o que a nossa mente fantasista quisesse imaginar.

Morríamos e ressuscitávamos num ápice; entravamos pelas traseiras da mercearia do senhor Costa numa correria brutal e saímos pela entrada principal, conduzidos por cavalos imaginários, alheios às imprecações do dono que se assustava com aquelas súbitas “visitas”. Era uma festa o beco da minha infância, cenário de sonhos e do faz de conta, que interpretávamos como ninguém; Hollywood não poderia ombrear connosco na arte da representação, tamanho era o nosso virtuosismo.

Éramos vida e dávamos vida até que ouvíssemos o “toque” a recolher. À noite, muitas vezes, esperava-nos uma sova, mas esse era o preço a pagar pelas queixas do senhor Costa, para quem os “cavalos” lhe roubavam os fregueses.

Passaram quarenta anos. Num assomo saudosista visitei há dias o beco da minha infância. Estava deserto, morto. Não vi nem ouvi crianças. As janelas estavam fechadas ao mundo e os cavalos já não relinchavam ao entrar na mercearia do falecido senhor Costa, agora tansformada num estabelecimento de pneus.

Vi que circulavam carros em vez de corcéis...emocionei-me; tinha sido feliz naquele beco e agora nada restava desse passado. Ainda tentei apelar à minha fantasia ressuscitando à pressa o Robin Hood que existia (e ainda existe) em mim, mas uma buzina estridente e apressada, arrebatou-me o sonho.

Fernando Barnabé

A Bruxa


Dizia-se à boca cheia que era uma bruxa. A ruindade e os seus impulsos de vingança eram conhecidos em toda a aldeia. Ninguém que passasse à sua porta se sentia seguro, e muitos até diziam, que um arrepio lhes trespassava o corpo, quando ousavam dirigir o olhar para a janela de um segundo andar onde sabiam que passava as tardes.

Os feitos da dita bruxa eram motivo de conversa em todos os lares, principalmente quando as famílias se reuniam à lareira depois do jantar, e, até as crianças, apesar das descrições tenebrosas dos adultos, não arredavam pé, pagando mais tarde com a insónia.

Contava-se por toda a vila a história mais recente da sua crueldade. Um pescador corajoso e arrojado, resolvera colocar em frente à casa da bruxa uma parelha de cornos, isso mesmo, uma parelha de cornos, que, segundo ele, era mais do que suficiente para o proteger a si e à sua família de qualquer mau olhado ou maléfica magia. A bruxa não gostou e disse para que todos a ouvissem, que aquela acção iria merecer uma resposta breve e contundente.

Não se incomodou o pescador, certo que estava dos poderes do seu amuleto, nem a sua companheira, que ria das imprecações diárias da bruxa, que tardava em apresentar argumentos que esgrimissem com os afiados cornos que pareciam suster a sua malignidade.

Um plano diabólico no entanto, já há algum tempo estava em curso. Numa tarde quente de Agosto, a mulher do pescador deitava o seu filho de seis meses num berço alto de verga, e, verificando que este dormia, resolveu sair por breves momentos com dois peixes que acabara de amanhar. Eram apenas cem metros a distância que a separava da casa da mãe a quem os levava para a janta. Foram breves os momentos de conversa.

Regressada a casa dirigiu-se instintivamente ao quarto onde o bebé dormia, mas, para seu espanto, este não se encontrava no berço. Aflita procurou por todo o quarto, por debaixo da sua cama, em todas as gavetas da cómoda, mas todas as buscas resultaram infrutíferas.

O bebé não gatinhava, portanto só poderia ter sido levado, pensou. Foi à janela e lançou um grito lancinante que fez brado em toda a aldeia – “Levaram o meu menino…levaram o meu menino”. As gentes avolumaram-se perto da sua morada. – “Mas oh mulher já procuraste em toda a casa?”, - “Para quê se o menino nem sequer gatinha”. A bruxa veio à janela nada surpreendida com o enorme bulício, sorrindo maliciosa à medida que a mulher do pescador gritava desesperada.

-“Foi ela gritaram todos…foi ela que te levou o menino”. “Vamos acabar já aqui com este corvo negro” gritaram. A bruxa, temendo o pior, pediu à mulher do pescador que procurasse o filho na cozinha, jurando, não sem que o medo a assaltasse, que o menino vivia.

A mulher do pescador, com o coração apertado, correu apressada em direcção à cozinha; não o viu, mas um leve ruído vindo do alguidar onde tinha amanhado o peixe fez-lhe redobrar a atenção. Precipitou-se como louca para o recipiente onde o menino se debatia envolto em guelras e escamas, parecendo sufocar na água sangrenta e pútrida. Num ápice salvou-o das águas e depois de um banho reparador, deitou-o no berço alto de vime onde adormeceu em paz.

Da janela da bruxa não restou qualquer vidro, tamanha a ira dos populares que não se cansaram de lhe arremessar pedras. Acalmaram-se por fim, talvez julgando que o susto infligido, fora suficiente para lhe aquietar futuras iniciativas e o maligno espírito.

Na calada da noite, o “corvo negro” afastou-se sorrateiramente da aldeia apenas tendo como testemunha a Lua minguante que o espreitava do alto. Não mais foi visto no pequeno povoado.


Fernando Barnabé

Coincidências significativas


Conhecemo-nos por amor à Psicologia. Era um excelente homem e professor, daqueles que não usava máscaras nem subterfúgios que disfarçassem eventuais falhas académicas ou de carácter. A sua simplicidade, a forma apaixonada como contava as histórias da sua vasta prática clínica, a dádiva e vontade em querer partilhar as suas riquíssimas experiências de vida faziam dele um professor querido por todos.

Naquela tarde, estava inquieto e apreensivo. Viu-me ao fundo do corredor e chamou-me com a voz nitidamente consternada. Confidenciou-me que consultara um astrólogo que previra para breve a sua morte - "mais dois meses de vida, é o que terá"; disseram-lhe; assim, sem qualquer espécie de pudor. Não estranhei que comigo desabafasse, afinal, havia já algum tempo que lhe manifestara o meu profundo interesse pelos aspectos que relacionavam a linguagem astrológica e a Psicologia Profunda, interesse que afinal ambos partilhávamos. Fiquei, isso sim preocupado, com o seu estado de pânico e pela falta de ética do presumível astrólogo. Tentei acalmá-lo dizendo-lhe que eventualmente poderia passar por uma situação de crise, mas que a morte, essa, era de difícil previsão, e que, nenhum astrólogo sério, com respeito pelo bem estar físico e psicológico de um cliente poderia cometer a imprudência de a comunicar; pedi-lhe inclusivamente os seus dados de nascimento para que eu pudesse perceber que aspectos astrológicos por trânsito e progressão estariam a evoluir nos céus. Acalmou-se o homem.

No dia seguinte, na posse dos seus dados de nascimento, verifiquei, que os aspectos mais significativos recaiam sobretudo na Quadratura de Plutão (em trânsito) a Mercúrio (regendo o ascendente em Gémeos) e num trígono de Júpiter ao ascendente. Plutão afligindo Mercúrio poderia causar alguma apreensão; estariam certamente em jogo questões relacionadas com a sua saúde. Pensei de imediato num eventual problema pulmonar, (Gémeos rege os pulmões) afastando em definitivo a hipótese de morte, já que Júpiter se apresentava ali como um factor protector relevante.

Comuniquei-lhe o resultado da minha análise e disse-lhe que poderia eventualmente passar por um período de alguma vulnerabilidade pulmonar mas que não correria qualquer perigo de vida; aconselheio-o no entanto a deixar de fumar. Os seus olhos brilharam e nem o meu aviso o demoveu dos seus hábitos tabágicos, já que acendeu ali mesmo um cigarro, que "saboreou" até ao fim. Estava deveras mais calmo e confiante.

O Outono aproximava-se. Necessitei fazer uma pequena intervenção cirúrgica num hospital de Lisboa. Despedia-me do enfermeiro quando passou por mim deitado numa maca o "meu" professor. Notei que se encontrava febril e frágil, mas ainda foi dizendo: - afinal você tinha razão, senti-me mal esta manhã, com dificuldades respiratórias e alguma febre, mas percebi que não podia ir dar aulas, vou ficar cá uns dias, diagnosticaram-me uma bronco pneumonia.

Desejei-lhe as melhoras e fiquei a pensar no propósito deste invulgar encontro; por mais que tentasse perceber os motivos desta “coincidência significativa” era claro que o esforço se revelava inútil. Afinal, desígnios há, que só a seu tempo nos são revelados.

Fernando Barnabé

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

…se Jesus Cristo voltasse à Terra…


Visitei o Museu do Vaticano faz pouco tempo e de lá saí esmagado pela riqueza e magnificência que alardeia.

Vi gentes de todos os cantos do mundo de máquinas fotográficas em riste ofuscadas pela sua opulência e ostentação; ouvi exclamações de assombro, vi semblantes agradecidos testemunhando com fervor religioso semelhante "dádiva", assim como observei alguns corpos estáticos de olhos esgazeados, não sei se admirando a “paisagem” aurífera que despontava das imensas galerias que a compunham, ou se pensariam, no mais íntimo do seu ser, que se Jesus Cristo voltasse à Terra, decerto morreria, não crucificado, mas de incredulidade pela subversão da sua doutrina e por todos os tesouros que foram erigidos em seu nome.

Fernando Barnabé

domingo, 6 de dezembro de 2009

Se fosse mais nova...


Estou farta…mesmo farta Carência. Para te ser franca Maria da Míngua, se fosse mais nova, já aqui não estava...e olha que não ia p´ra muito longe...cada vez me sinto mais pequenina e triste neste país de faz de conta. Tenho, e que Deus me perdoou o que vou dizer...tenho vergonha de ser portuguesa. Ainda ontem estive a falar com a Maria Miséria, aquela que mora ali na Praça da Alegria, nem calculas como a filha se tem safado lá por Espanha. Ganha mais dinheiro a trabalhar nessas casas de hamburgas do que o Silvério dos computadores. Quem é esse Silvério? Oh mulher...então tu não te lembras do filho da Dolorosa, aquela que o marido teve muito mal o ano passado do coração. Ah! esse que esteve na Austrália, já me lembro mulher; esta cabeça está cada vez pior...é das apoquentações e dos malabarismos que tenho que fazer com a pensão do meu falecido...é uma tristeza, a gente quase que morre de fome.

Se não fosse lavar as escadas das donas nem sei como me aguentava…elas é que me vão dando algum se não nem pra comer chegava. Mas oh mulher, tu com setenta anos ainda lavas escadas? Oh filha, enquanto me aguentar e as forças chegarem que remédio e olha que não tenho andado muito bem aqui da máquina...qualquer dia...

Eu, é mais os bicos de papagaio mulher, às vezes até me custa levantar da cama. Mas olha lá…agora a falar a sério, tu se fosses nova ias mesmo daqui pra fora…tinhas coragem de largar tudo? Oh filha, queres maior coragem que esta… viver com 240 euros por mês? Lá isso é verdade mulher…E já pensaste nestes jovens que por aí andam com cursos superiores e tudo, sem emprego, a bater com a cabeça nas paredes. Olha o Rogério…o filho da Luísa da Lástima…que cabeça tinha aquele rapaz. Trabalhava e estudava à noite…o sacrifício que fez e vê bem onde está ele agora. Coitado, não resistiu…tanta luta, tanta luta e no fim acabou com a vida. Ele pensava demais Carência…digo-te uma coisa, quanto mais pensamos pior...eles é que se abotoam, querem lá saber de nós que trabalhámos uma vida inteira...olha, fico-me por aqui para não desatar a dizer asneiras e subirem-me os nervos à cabeça... ainda me dá uma coisa!

Mas se fosse nova não pensava duas vezes…punha-me daqui pra fora enquanto o diabo esfrega o olho. Isto nem dá gosto viver mulher…olha, nunca te disse isto, mas às vezes apetece-me fazer como o pobre do Rogerinho, que Deus lhe tenha em paz.

Oh mulher tu chega-te pra lá com esses pensamentos...ave agoirenta... Mas diz-me lá tu o que é que a gente anda pra aqui a fazer...pensa só um bocadinho; lutamos para sobreviver, nada temos que nos alegre os dias… quem é que quer saber de nós? Os maridos já cá não estão, os filhos também lutam com dificuldades...é o destino mulher, é o destino; nascemos pobres e pobres havemos de ir. Mas não te inquietes que matar não me mato. Enquanto puder indo fazer as minhas coisinhas, a lida da casa, ir à praça fazer uma compritas, a coisa vai indo, mas se fosse mais nova, ai se fosse mais nova! Ia aprender espanhol e ala que lá vou eu.


Fernando Barnabé

* Escrito quando os números do desemprego em Espanha não eram muito significativos.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Nas urgências


Estava sentada ao meu lado no banco das urgências do hospital. Os olhos mostravam a febre que lhe consumia o corpo. Ardia a criatura!

Era uma senhora dos seus sessenta e cinco anos, de traços finos e amáveis, apesar das dores que a tolhiam. Percebi que sofria... muito... mas, a sua atitude face ao sofrimento, que chegou sem pedir licença, era de uma serenidade invejável.

A enfermeira deu-lhe um comprimido para baixar a febre e vinte minutos depois dizia-me com candura: - "Já me sinto melhor sabe, a quimioterapia por vezes prega-me destas partidas", revelando o parco cabelo escondido pela toca, sem qualquer constrangimento.

Tinha ultrapassado já aquela fase em que o sentimento de raiva dá lugar à resignação, à aceitação natural de que “somos seres para a morte”, e que a partida não é mais do que uma necessidade da alma, também ela sedenta por novas viagens.

Fitou-me e disse-me com um sorriso cândido: “Desculpe lá a minha curiosidade,e o jovem o que faz por cá? Está doente? Olhe que não parece. Que belas cores as suas...decerto já foi apanhar uns banhos de sol, se eu pudesse era o que fazia, já viu como estou branquinha? O meu pai, que Deus o tenha, também era assim...”

Não consegui articular palavra. Olhei-a nos olhos azuis agora descongestionados e pensei como seria bom, que com um simples toque de mão, pudesse operar um milagre. Um sentimento antigo de impotência e de frustração incontidas focalizou-se na garganta...abandonei a sala à pressa, antes que a minha heroína desse conta de que os homens também choram.

Fernando Barnabé

Voltei à Escola


Voltei à escola trinta e três anos depois; a mesma onde vi nascer Abril dos rubros cravos. Ainda me lembro das palavras titubeantes da professora:
- “Está a passar-se algo lá fora e os meninos não estão autorizados a sair”. Ficámos curiosos mas a julgar pela voz trémula da docente, algo importante se passara.

Naquele tempo, quase todos os jovens não faziam ideia que vivíamos numa ditadura, eu incluído; sabíamos apenas, porque os nossos pais nos alertavam, que não era aconselhável apanhar nada do chão que conte-se algo escrito porque as consequências poderiam ser desagradáveis. De nada valia perguntar-lhes porquê, não nos respondiam, e hoje, tenho absoluta certeza, nem mesmo eles, sabiam os verdadeiros motivos.

A “minha escola” estava mais velha que eu, sem pintura, ou sinal de inovação. Perguntei-me o que teria acontecido, a julgar pelo exiguo número de jovens que deambulavam pelos corredores cinzentos e frios configurando um cenário pobre e confrangedor.

Entrei em duas salas, porque o motivo que me trazia ali, era trocar algumas impressões com os jovens sobre questões relacionadas com as toxicodependências e o mesmo sentimento prevaleceu. As paredes estavam nuas e encardidas, os armários e carteiras ainda se lembravam de mim e quando assomei pela janela, vi que lá fora, o velho campo de futebol definhava a olhos vistos. Não havia linhas que o delimitassem e as ervas daninhas proliferavam denunciando a falta de uma mão conhecedora; o mais triste ainda, era escutar apenas o diálogo surdo das balizas em vez das disputas acaloradas pela posse da redondinha.

Subitamente afloraram-me à mente um turbilhão de ideias e um misto de raiva e de indignação tomou conta de mim. Lembrei-me dos novos estádios de futebol do Euro 2004 que continuam vazios e dos hospitais terceiro mundistas, cheios e obsoletos, que proliferam por este país. Lembrei-me também das mentes distorcidas e fantasistas que desde Abril libertador prometem apostar na educação e na saúde.

Foi triste ver morrer a “minha escola". É triste adiarmos Portugal.


Fernando Barnabé

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Para onde foi o nosso amor?


Já passaram alguns anos desde que jurámos amor eterno.
Como eu te amava, meu Deus! Já nem consigo lembrar-me quantas vezes procurámos fundir num só os nossos corpos sedentos de infinito. Descobrir o teu corpo era um acto sagrado, um milagre que abalava as fundações da minh’alma. Lembras-te que nos olhávamos profundamente como se entoássemos poemas de bem querer e melodias celestiais inaudíveis?

Agora aqui estamos, deitados, lado a lado, olhares vagos postos num programa qualquer da TV. Eu não quero o teu corpo e tu há muito que não me procuras... Para onde foi o desejo? Quem o matou? Foste tu? Fui eu? Porque não falamos desta angústia que nos corrói o viver? De que temos medo? Será que seguiremos assim, nesta espécie de paz podre, renegando o prazer do corpo e do espírito? Que violência para a alma meu Deus!

No quarto ao lado, dorme uma menina, fruto de inúmeros equívocos; pensámos que talvez ela nos iluminasse os dias... fosse a derradeira esperança. Hoje lamentamos, que o nosso egoísmo, também lhe ensombre o olhar.

Fernando Barnabé

Se tenho medo de amar?


Se tenho medo de amar? Que pergunta tola essa doutor…
Medo eu?…Eu não tenho medo de nada, a não ser que me falte o salário no fim do mês, o resto pouco me importa… Afinal quem é mais importante do que eu? Alguém merece que eu sofra, que eu chore, que me deprima? Não…ninguém. Já houve um tempo em que acreditei que a vida nada significava se não fosse partilhada, mas já não sou ingénuo, agora só me tenho a mim, compreende?

Já sei que me vai perguntar porque persisto em aqui vir…
Nem eu sei bem como responder-lhe… talvez, porque me cansei de falar comigo mesmo, talvez, porque as conversas sejam monótonas e tristes, talvez porque o eco das minhas próprias palavras me vão corroendo a alma se é que ainda a tenho...talvez porque a esperança se esvai a cada dia…

Sempre fui egoísta; sempre guardei p'ra mim o melhor bocado, nunca me interessei verdadeiramente pelos outros, a não ser para possuir o que neles invejava. Tem à sua frente um vampiro, uma besta, um verme, um parasita, um dejecto que não merece viver…mas eu sei que não está aqui para julgar-me, não é verdade? E se eu lhe disser que alguém já se encarregou de o fazer…se é que existe esse alguém… E se eu lhe disser que tenho uma doença incurável? Que são poucos os meses que me restam de vida? E se eu lhe disser que agora nada mais me interessa senão partir e levar comigo uma réstia de esperança neste coração empedernido.

Sinto falta das coisas simples da vida, sabe?...agora que ela se esvai como areia entre os dedos, penso que a deveria ter celebrado todos os dias, e agradecido cada hora, cada minuto...

Já sinto a saudade de um sorriso de criança, do calor de um beijo, e dói muito, muito mesmo, saber que ninguém me chorará quando partir…

Será que lhe posso pedir um abraço?


Fernando Barnabé

Amavam-se


Deitada na cama, esquadrinhava como habitualmente o peito saliente enquanto assistia atenta a um programa televisivo. O gesto maquinal deixou de o ser quando sentiu entre os dedos uma pequena massa nodosa mas suficientemente perceptível.

Ansiosa, levantou-se em silêncio da cama, desligou a televisão e sem acordar o marido que dormia a seu lado dirigiu-se à sala. Sentou-se ansiosa no sofá, e agora, mais concentrada, iniciou a palpação. As mãos húmidas começaram então a subir e a descer os dois peitos em pequenos movimentos circulares. Não havia dúvida, no peito esquerdo insinuava-se um vulto, que, apesar da sua pequenez, era suficientemente concreto para que a sua atormentada mente construí-se ali um filme horrendo e assustador.

Via-se só, completamente abandonada, sem os dois peitos, sem cabelo e sem ânimo, para enfrentar tão cruel provação; um barulho vindo do quarto fê-la voltar à realidade. O marido tinha dado pela sua falta e dirigia-se à sala. - Então minha querida o que se passa? O que fazes aí? Que cara é essa? Não te estás a sentir bem?
Ela, sem levantar a cabeça, murmurou – Encontrei um pequeno nódulo no peito esquerdo, uma coisa minúscula… e, num assomo de heroína, lá foi dizendo: - Não deve ser nada, só hoje é que percebi que o tinha, não há razão para alarme – De qualquer modo, disse ele acariciando-lhe a face, vamos amanhã ao médico...ora mostra lá minha querida... deixa-me ver o que descobriste.

Ela disse-lhe que sim que iria, congratulando-se por ele querer acompanhá-la, ao mesmo tempo que sentia as suas mãos quentes e dóceis percorrerem-lhe os seios. – Não, minha querida, não me parece que seja preocupante. Disse ele.

Uniram-se as bocas e os corpos não ofereceram resistência aos caprichos do desejo, antes enlaçaram-se, num frenesim imaculado e revelador. Amavam-se!


Fernando Barnabé

Fiz-me ao mar


Fiz-me ao mar, casa onde se abriga o meu sustento.
Aqui, respiro o voo da gaivota, sorvo o ar do vento e sinto o
embalo da onda, como mãe que cuida, como mãe que ama.
À noite falo com as estrelas; elas são sábias e constantes, muito
mais sábias do que os homens sábios e constantes.
Que bem se está aqui na minha casa onde é sempre belo o amor que fazemos...

Fernando Barnabé

Ser "sem afecto"


Fiquei nu quando partiste.
Disseste simplesmente – “Não te quero mais” e sumis-te na noite. Doeu muito...
Abriu-se a ferida antiga, como antigo era o nosso modo de amar - sofrido, sacrificado, vagueando nas águas mornas do hábito e da rotina consentidas.
Nunca te amei com a alma. Nunca senti vontade de gritar o teu nome ao vento, desenhá-lo na areia da praia ou dedicar-te um simples verso.
Pergunto-me então, porque dói tanto ver-te fugir de mim como se um pária eu fosse.
E ao mesmo tempo que pergunto, a resposta chega célere e contundente. Desvelaste-me a alma e deste conta que não querias ser o meu remédio. Era uma tarefa hercúlea e tu eras tão frágil quanto eu.
Afinal fomos dois náufragos procurando um no outro a sua tábua redentora.
Ser “sem afecto” não tem cura, não é verdade?

Fernando Barnabé

Chove lá fora


Chove lá fora.
Chuva miudinha pegadiça, caindo com a noite de mansinho.
Lembranças afloram insinuantes despertadas talvez pelo cinzento dos céus.
Já as conheço,de outros tempos, de outras idades.
Só querem que lhes dê importância...
Ignoro-as, deixando simplesmente que vagueiem sem que o meu pensamento nelas se demore.
Não lhes dou tempo para que se agigantem e me cerquem esperando o momento da rendição.
Odeiam que lhes diga que são as minhas melhores amigas, o passado que construiu o meu presente, a mola que me projecta no futuro.
Feridas e obsoletas, escondem-se cobardes num qualquer lugar da memória.
Sei que voltarão, numa noite cinzenta qualquer, talvez mais arrogantes e torrenciais, como a chuva que agora cai ferindo a calçada.


Fernando Barnabé

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Tatuagem


Sei onde escondes as tatuagens;
Marcas profundas, incorpóreas;
Que a cada dia me dás a descobrir.

Sei das suas cores das suas formas;
E nelas, as tuas dores e o teu sorrir.

Sei do cinzel que as moldou;
Quando tu eras inocência.

O que não me dizes, no teu olhar desvendo;
Tatuagem verde esperança;
Alma peregrina, minha irmã.

Fernando Barnabé

Oração


Um homem de vinte e oito anos numa pequena vila situada a norte de XY violou a filha desde os seus cinco anos de idade. A jovem agora com dezoito, atormentada pelos sucessivos abusos sexuais desferiu-lhe dois tiros de caçadeira, tendo o pai morte imediata. O tribunal sentenciou-a com prisão perpétua.

Duas bombas rebentaram hoje no centro de uma praça iraquiana fazendo trinta e cinco mortos.

Uma mulher, foi apanhada em flagrante por dois polícias à paisana, deitando no caixote do lixo o seu filho recém nascido.

A fome já matou este ano centenas de milhar de pessoas em todo o mundo.

Um tsunami abateu-se sobre uma cidade americana semeando a morte e a destruição, milhares de pessoas ficaram sem lar.

A corrupção é um fenómeno que cada vez mais se vem instalando no nosso planeta, a prová-lo estão as diversas investigações levadas a cabo pelas polícias de vários países, que têm vindo a por em causa a honestidade e idoneidade de um sem número de governantes.

Um jovem de quinze anos empunhando uma arma de fogo, disparou aleatoriamente sobre dezenas de pessoas num centro comercial, matando oito pessoas e ferindo doze, duas delas em estado muito grave.

Um violento sismo abalou a cidade de PCT. As autoridades locais estimam que as vítimas ascendam a seis mil pessoas.

Dois rapazes de quatorze anos mataram por asfixia uma menina de oito. Segundo o seu depoimento estariam a simular uma cena de um filme dramático que tinham visto na véspera.

Segundo um estudo divulgado pelo observatório europeu da droga e da toxicodependência, o número de cocainómanos tem vindo a aumentar nesta última década.

Um avião explodiu esta madrugada no Oceano Pacífico com duzentas e trinta e quatro pessoas a bordo. Fontes fidedignas asseguram que se tratou de um atentado terrorista.

O cancro e as doenças cardiovasculares são, segundo um estudo levado a cabo pela Universidade de XZ as principais causas de morte no planeta. Adiantam ainda que estas doenças se devem principalmente à vulgarização e repressão dos sentimentos e emoções que grassam na raça humana.

A igreja católica através do seu representante maior, pronunciou-se esta manhã contra a utilização do preservativo.


Ámen

Fernando Barnabé

Falei com Jesus Menino


Falei com Jesus menino.
Estava triste e magoado com a ignorância dos homens.
Disse-me que não entendia porque persistíamos
em celebrar o Natal em seu nome se havia tantos meninos
e meninas que morriam todos os dias sem uma côdea de pão
e os homens pereciam em guerras intermináveis, carregando o ódio e a vingança nos seus corações.

E num tom grave e sério foi dizendo:

-"Celebrarei convosco, quando transformarem as bombas em pão...quando em redor das vossas lautas mesas pelo menos esteja alguém que não tenha tecto; quando os vossos pinheirinhos estúpidos reluzentes e as vossas melodias hipócritas entorpecentes derem lugar à consciência de que, num qualquer lugar do planeta, alguém precisa de um sinal de esperança, de um sopro de alento, de uma chama que aqueça a sua alma fria!"


Fernando Barnabé

Nunca duvides do teu céu...


Nunca terás um colo, um peito que te acolha
e te aconchegue, mas não o lamentes…
Nasceste para cuidar; para sarar as feridas do mundo.

O teu fado é partilhar o Sol - tua força de vida -
esgotar-te na dádiva, vivificar as almas sem rumo e sem caminho.
Se acaso esmoreceres, nunca duvides do teu céu,
do desenho das estrelas e planetas que te viram nascer,
e, mesmo que sozinho estejas na porfia,
abraça sem hesitar o seu sábio propósito criador.

Alguém, mais além, te afagará o coração de menino!


Fernando Barnabé

Do medo


Um dia, quando o tempo quiser,
Vou rir dos meus medos.
Vou jogar à bola com a perda, a dor e a morte;
porque não?
Vou fintá-las com perícia e elevação.
Não mais perderei o sono,
o bater sincopado do coração.
A perda? É pura evolução…
A dor? Não me atingirá a alma…
Morrer? Lembrança breve do que fui,
alma à procura de outro corpo, de outra viagem.
Só terei medo que me levem as memórias:
que esqueça o meu nome, o verbo ser, o verbo estar,
o verbo AMAR...
Tudo o resto, são coisas fúteis e banais.

Fernando Barnabé

Não estranhes o silêncio


Não estranhes o silêncio,
As palavras que guardo e não te digo,
Porque é em silêncio
Que a minha alma fala.

No meu coração não há ódio,
Há apenas a certeza que o tempo
É feito de signos e sinais
E que não somos nós que escolhemos a hora

Não estranhes a ausência
Eu estarei sempre presente
Ainda que penses que esqueci
O teu nome, a tua voz…

Os desígnios dos céus
Estão para além das humanas inquietações,
Dos seus sobressaltos e ânsias vãs,
Por isso, descanso na espera.


Fernando Barnabé

Negação


Julgo ouvir os teus passos, no quarto, na sala, na casa toda;

Julgo ver-me contigo deitado, sentindo o teu odor almiscarado, a tua etérea presença trespassando o meu corpo ígneo sedento de ti;

Julgo ver-me enlaçado ao teu ventre e sentir que fui capaz,
que agora o milagre és tu, e reconfortar-me com a ideia que também faço parte dele.

Julgo que habitas em mim desde que o amor existe e que assim permaneceremos até que nos expulsem do paraíso (porque o nosso amor é divino demais).

Por assim julgar, o presente não vivo: a minha casa não tem tecto; na minha cama não se celebra o amor; o teu ventre está vazio…nada plantei, nada germina em ti…apenas a culpa me resta.

E porque do passado não posso viver, sem que ao presente dê razão, eu digo: tu nunca foste a minha Eva, eu jamais fui o teu Adão.

Fernando Barnabé

Sinto o teu sal…

Sinto o teu sal desaguar no meu ventre;
torrente de vida que acolho e venero
e nasce em mim a esperança, a graça e o teu nome
e a vontade de seres em mim eterno mar.


Fernando Barnabé

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Cântico Negro de José Régio declamado por João Villaret

Cântico Negro de José Régio declamado por João Villaret

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Que não se te queixe a alma


Que não se te queixe a alma.
Morde a vida com os dentes da esperança.
Que se não te escape enquanto ainda respiras,
Enquanto ainda andas, enquanto ainda vês…
Abraça-te e faz contigo uma festa!
Lança o teu maior sorriso ao infortúnio.
Beija cada lágrima, festeja o calor do sol, o cheiro a maresia,
o amor que ainda trazes no coração.
Não tenhas medo do amanhã;
a paz estará contigo no fim da caminhada!

Fernando Barnabé

Zen


Por fim, sentia o destino em todos os passos do caminho.
Agora tudo lhe fazia sentido,
a dor, a angústia, a felicidade, todos os momentos já vividos.
Transformara-se, num ser mais adulto,
com poucas ou nenhumas certezas.
O seu lema e a sua bandeira era nada esperar.
Desejava apenas ver o nascer de um novo dia
e sentir que a água fresca
que o seu corpo procurava todas as manhãs lhe vivificavam a alma.

Fernando Barnabé

A criança e o homem tristes


A criança vivia triste dentro do homem triste...
Foi imposto e prematuro o divórcio…
A criança nunca teve um brinquedo de brincar e o homem nunca brincou com a sua criança.

Zangam-se muito...
a criança quer que o homem aceite a criança que não foi, e, o homem, quer simplesmente matá-la dentro de si.

Um dia a criança morreu…
do homem triste sabe-se que procura em vão resgatar o passado.

Fernando Barnabé

Do desamor


Era assim há muitos anos; dois corpos habitando a mesma casa o mesmo espaço, sem saberem ler-se… dois analfabetos afectivos, procurando desesperadamente que uma entidade salvadora lhes decifrasse o coração.

As almas exigiam-lhes liberdade mas o preço a pagar era a vergonha da separação, a dor dos filhos, os sonhos desfeitos…que preço tão alto a pagar…perguntavam-se. Coragem ou cobardia? Medo? Solidão? "Até que a morte vos separe"? Os pratos da balança mantinham-se em equilíbrio estável denunciando o peso e a inércia dos dias.
Enquanto não encontravam respostas e os filhos cresciam, envelheciam agonizantes…o desamor tinha-os consumido.


Fernando Barnabé

Fala-me da tua alma


Fala-me da tua alma.
Diz-me de que cores se veste
e que melodias a embalam
quando o vento vindo do mar acaricia a onda.

Diz-me se acaso sorri
quando o sol te fervilha nas veias,
ou quando o amor se derrama
pelos cumes e vales do teu corpo moreno.

Diz-me se ela é livre,
ou se espera inquieta que a libertem num dia qualquer.
Diz-me!


Fernando Barnabé

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

José Régio - Cântico Negro


CÂNTICO NEGRO

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços, E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí!
Só vou por onde Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

sábado, 21 de novembro de 2009

Essas mãos não são tuas...


Essas mãos não são tuas… escolheram-te.
Não me perguntes porque o digo,
Eu não saberia responder-te…
Sinto-o apenas…pressinto-o…

Vê como elas são luz e eternizam o saber que transportas!
E os teus dedos!...
vê como se insinuam pela elegância e elevação
desmentindo a falsa fealdade do teu corpo…
São sábias essas mãos…
Deixa-me beijá-las até que os meus lábios se cansem
e adormeçam contigo.

Fernando Barnabé

Lavou-se no mar salgado


Lavou-se no mar salgado
à espera que das sombras que o sal extinguia
ressuscitasse a flor inusitada... semente de sol plantada
desde o seu berço de criança.
E o mar levava para longe as dores pretéritas sarando-lhe as feridas.
Agora via os seus sonhos flutuar nas águas ao som dos silvos das gaivotas.
E foi naquele mar de sublimes lágrimas que afogou as suas
E viu o seu corpo inundar-se de luz!

Fernando Barnabé

Fica até amanhecermos


Fica até amanhecermos,
Deixa-me partilhar contigo o cheiro a maresia,
Eu sei que o sentirás como se amanhã não nascesse p'ra ti um novo dia.

Verás o Sol da minha terra aquecer-te a alma com brandura,
E sei que dele te lembrarás se acaso conheceres a desventura.
Verás as marcas dos nossos passos afundarem-se de mansinho na espuma das águas e ouvirás os silvos das gaivotas madrugadoras e as vozes graves dos pescadores que vão p’ra faina.
Verás os seus barcos partir cheios de esperança…

Já vejo um sorriso assomar aos teus lábios de romã,
Sei que vais ficar…
Tu que és o amanhã…O meu mar, o meu sol, o meu sal, a vida inteira!

Fernando Barnabé