sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

O brinquedo mais bonito do mundo


Custava sete e quinhentos o brinquedo mais bonito do mundo. Tinha desenhado no seu interior circular um campo de futebol com jogadores de duas equipas, eternas rivais, duas balizas minúsculas, uma bola muito pequenina e “milhares de espectadores”. Um vidro, como se fosse uma cobertura ultra moderna, que hoje se vê por esses campos fora, cobria todo o recinto. Um círculo tão pequenino mas que a imaginação fértil dos putos que faziam da rua o seu local de folguedo transformava num cenário mágico e vibrante.

Ao Manel, na magreza dos seis anos, o brinquedo mais bonito do mundo, cabia-lhe na palma da mão e, por algumas vezes, sempre que os amigos lhe emprestavam o círculo fantástico, ele lá tentava levantar a assistência com golos de belo efeito na baliza dos verdes. Era sol de pouca dura…o jogo era breve, não havia tempo para goleadas, porque o brinquedo tinha um só dono e era disputado por muitas mãos que queriam fazer o gosto ao pé, ou melhor, à mão…sim, porque naquele jogo de futebol, os golos marcavam-se com as mãos, ou se preferirem, com a mestria dos dedos, e olhem, que alguns dos pirralhos, poderiam ombrear com o Cristiano Ronaldo em técnica e virtuosismo.

Numa bela noite urdiu um plano para poder ter só para si o brinquedo mais bonito do mundo…já tinha feito várias tentativas mas sempre mal sucedidas; a mãe não estava pelos ajustes…

- ”Sete e quinhentos? Queres sete e quinhentos…para quê? Tu sabes o que custa a vida? No meu tempo nem cinco tostões o meu pai me dava para rebuçados… tu estás é com febre…nem penses nisso…que pouca vergonha…sete e quinhentos…era a primeira bola a sair do saco”.

Mas não ficava por ali a ladainha…

-”O teu avô, uns dias antes do meu casamento não me quis comprar os sapatos que eu gostava por uma diferença de cinco escudos e tu querias agora que eu te desse sete e quinhentos para comprar uma porcaria que não tem utilidade nenhuma…tem mas é juízo?”

O plano era mais que perfeito, não iria falhar, estava tudo calculado ao milímetro; mas ele sabia que tinha que ser muito bem executado. Ensaiou várias vezes no seu quarto o que iria dizer e como iria fazer...por isso, apesar do nervosismo que o invadia, no dia seguinte, quando saiu às compras com a mãe, estava totalmente confiante. O brinquedo mais bonito do mundo iria finalmente ser seu...

Enquanto a mãe se ocupava em regatear ao tostão apenas o básico que lhes garantisse o sustento, Manel, tentava avistar a vendedeira dos brinquedos mais bonitos do mundo por entre uma mole imensa de gente que disputava postas de bacalhau demolhado que diziam estar a bom preço. Esgueirou-se e foi ao encontro de uma senhora de idade que trazia consigo pelo menos meia dúzia dos tais brinquedos. Sorriu-lhe…ela devolveu-lhe o sorriso.

-“Então o menino vai querer alguma coisa minha?” Perguntou.

Ele sentia-se gelar por dentro, as mãos e o corpo tremiam-lhe e percebeu então que o plano, tão ardilosamente preparado, afinal não era assim tão fácil; tinha que ser expedito e deixar-se de lamechices… estava a lutar pelo brinquedo mais bonito do mundo…disse-lhe então:

-“Está a ver além aquela senhora vestida de azul? Não…não é a do lado esquerdo…olhe leva agora uma posta de bacalhau demolhado na mão…está a vê-la?”

Pareceu-lhe ter sido convincente…porque nem pestanejara, nem os costumeiros tiques na vista o denunciaram…ia dar certo, pensou.

- “Sim, estou a vê-la…até é minha freguesa, já me tem comprado agulhas e carros de linhas…” disse-lhe.

Manel, ainda mais confiante com a deixa, prosseguiu:

- “Pois olhe minha senhora, a minha mãe manda dizer que me dê esse brinquedo que ela já cá vem pagar-lhe…

E, sem lhe deixar tempo para a resposta, adiantou:

- “Custa sete e quinhentos não é? “.

-“É sim menino, leve lá o brinquedo…eu ando por aqui, não me afasto muito”.

- “Não se preocupe que já lhe venho trazer o dinheiro”, disse-lhe, morto de contente pela engenhosa artimanha. Faltava agora o mais difícil, convencer a senhora sua mãe...essa sim, uma oponente à altura...mas o seu plano era de todo infalível...

Enquanto não chegava até ela lá foi marcando uns golitos aos verdes, mas não contente com o feito, parou no caminho, para melhor esgrimir os seus dotes de goleador. Estava nas nuvens, não ouvia nem via ninguém à sua volta, o melhor brinquedo do mundo pertencia-lhe e a felicidade era tanta que o seu coração batia ao ritmo da paixão.

Tão embevecido estava que não deu pela presença da mãe. Esta olhava-o de cima abaixo, ar inquisidor, ao mesmo tempo que, com o pé num ritmo frenético, castigava as pedras da calçada em jeito de quem se pergunta onde teria desencantado o petiz aquela coisa circular e inútil. Surpreendido tentou preparar a defesa.

- “Conheces aquela senhora a quem compras agulhas e linhas? deu-me este brinquedo e disse-me que tu lhe podias pagar a prestaçõ...”

Foi a última palavra que lhe deixou pronunciar porque o levantou por uma orelha, levando-o até à vendedora que ainda se encontrava a uns bons cem metros. Sentiu que todos os olhares se fixavam nele, como se um degenerado fosse.

- “Crucificai-o, crucificai-o”, julgou ouvir gritar a multidão, tal era o seu temor.

Fez-lhe devolver o melhor brinquedo do mundo. Cabisbaixo não conseguiu encarar a vendedora que lhe soergueu a face e lhe disse com ternura:

-“Eu dava-to meu filho, mas a minha vida está tão difícil... olha meu menino, não chores, um dia, hás-de ter um novinho em folha como este”.

Manel olhou a mãe de relance pressentindo no seu olhar vítreo sinais de ódio e de raiva ao mesmo tempo que da sua face um estranho esgar se desprendia.

Estaria a lembrar-se dos seus sapatos de casamento?


Fernando Barnabé

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