segunda-feira, 22 de março de 2010

As fobias



A ansiedade tem uma função adaptativa. Quando estamos perante um novo desafio, quando entramos pela primeira vez na escola, quando vamos a uma entrevista para um emprego, quando temos que falar em público, experimentamos alguma ansiedade. Ela tem, como dizia uma função adaptativa porque nos capacita a mobilizar recursos cognitivos (a linguagem, a percepção, a memória, a atenção) e fisiológicos, através da activação de determinadas glândulas, e do nosso sistema nervoso autónomo.

Desta forma, podemos dar respostas mais ou menos adaptadas às solicitações do quotidiano. No entanto, quando estamos expostos durante longos períodos de tempo a emoções negativas, geradoras de ansiedade, de medo, de raiva ou de tristeza, mobilizamos com maior frequência os nossos recursos cognitivos e fisiológicos e, como consequência, as suas funções tendem a ficar comprometidas. Gera-se uma maior excitabilidade e as respostas aos estímulos tornam-se muito menos eficazes e até mesmo desadaptativas.

Podem então surgir reações psicofisiológicas, ou psicossomáticas, resultantes de uma prolongada exposição da pessoa a situações geradoras de ansiedade.

As fobias estão classificadas como perturbações de ansiedade conforme expressa o Manual de Diagnóstico e Estatístico das Perturbações Mentais da Associação Americana de Psiquiatria (DSM-IV)

A palavra fobia, deriva do grego phobos, deusa grega do medo, e significa terror, pânico. A imagem da deusa era utilizada até pelos guerreiros nas suas armas, a fim de aterrorizar os inimigos, tal era a sua fealdade. A fobia é caracterizada por um medo irracional face a um objecto específico ou situação que objectivamente não apresenta qualquer perigo.

A pessoa com esta perturbação tem consciência que o seu medo é irracional e que as emoções que o estímulo fóbico despoleta são em regra exageradas.

Como o estímulo desencadeia reacções desagradáveis para a pessoa ela tenta utilizar um mecanismo de defesa que lhe parece mais apropriado - o evitamento.

Evitar as situações geradoras de ansiedade, podem no entanto, limitar consideravelmente a nossa rotina diária. A pessoa, sente-se em regra impotente para controlar a ansiedade, podendo recorrer, nalguns casos, à utilização excessiva de álcool, tabaco ou de outras substâncias nocivas para a saúde. No entanto, pessoas há, que tentam negar a sua ansiedade apresentando atitudes e comportamentos contra-fóbicos, como por exemplo, alguns amantes dos desportos radicais.

Outras regozigam-se, porque escondem com alguma eficácia as suas emoções, mas estas apresentam, em regra, uma grande excitabilidade psicofisiológica, podendo com o tempo, comprometê-la seriamente.

Na agorafobia - medo irracional de espaços abertos dos quais a pessoa pode não vir a escapar, sobretudo se não encontrar ninguém que a possa ajudar no caso de um ataque de pânico, o comportamento mais comum, passa por evitar esses lugares, ou enfrentá-los com alguma dificuldade quando acompanhados por alguém da sua confiança que possa conter a sua ansiedade.

Na fobia social, o indivíduo sente um medo irracional face ao contacto com outras pessoas. A ansiedade gerada por ter que falar em público é enorme, por medo do rídiculo ou por medo de ser escrutinada. Saber que os outros podem eventualmente perceber o seu estado de ansiedade, faz com que evitem comer em restaurantes ou frequentar outros locais públicos.

Assim, evitam falar com desconhecidos e apresentam até dificuldades nas suas relações
afectivas, por consequência tendem ao isolamento, limitando desse modo a expressão dos seus afectos e emoções. Normalmente a auto estima e a auto confiança destas pessoas é baixa.

Em regra as pessoas com Personalidade Evitante têm maior probabilidade de vir a sofrer desta perturbação.

Nas fobias específicas o medo é canalizado para objectos, animais ou situações específicas indutores de ansiedade, como por exemplo os elevadores, as cobras, os ratos, o sangue, as agulhas, as alturas, etc. Pensar nestas situações pode ser suficiente para que seja despoletado um ataque de pânico.

Os ataques de pânico são episódios que têm uma duração de 20 a 30 minutos, por vezes um pouco mais, são acompanhados por pensamentos de catástrofe eminente, de morte, com reacções somáticas clinicamente significativas: ansiedade excessiva, estado confusional, taquicardia, sensação de opressão no peito, sedurese, boca seca, formigeiros, parestesias. A pessoa pode até pensar que vai ficar louca ou que algo não está bem consigo a nível orgânico.

Os ataques de pânico podem ser expontâneos, não dependendo portanto, de nenhum estímulo ansiogénico; podem ser situacionais, quando a pessoa está exposta a um estímulo fóbico, ou situacionalmente prováveis, quando a pessoa com algum sofrimento enfrenta um estímulo fóbico, surgindo o ataque de pânico à posteriori.

A ocorrência e a frequência dos ataques de pânico é variável. Há pessoas que podem ter vários ataques por dia, e só voltarem a ter passado um mês. Outras têm um ou mais ataques por semana.

É inevitável que a pessoa com fobia e ataque de pânico esteja quase permanentemente preocupada com o próximo ataque, daí que, se essa preocupação se manifestar durante pelo menos um mês, ela vai constituir uma perturbação de pânico.


AS CAUSAS

Até meados do século XX, pensava-se que as causas desta perturbação eram apenas psicológicas, devido a conflitos intrapsíquicos não resolvidos, sobretudo na infância, hoje está provado, através de estudos efectuados, que uma maior produção de substâncias neuroquímicas existentes no cérebro, como a serotonina e a dopamina podem provocar perturbações de ansiedade. Estudos comprovaram ainda que existem factores hereditários em jogo.

Os familiares biológicos em primeiro grau de pessoas com fobia ou perturbação de pânico têm maior probabilidade de contrair a perturbação. Estudos com gémeos também evidenciaram esses factores hereditários.


O TRATAMENTO

Podem utilizar-se os inibidores selectivos de recaptação da serotonina e os inibidores da enzima monoaminooxidase (IMAO) e alguns tipos de terapia, como a terapia Cognitivo-Comportamental que incide sobretudo sobre o sintoma e a sua remissão e as terapias de base psicodinâmica, que incidem sobre as causas, estas, no entanto, podem ser mais morosas.

A terapia comportamental utiliza a técnica denominada dessensibilização sistemática. Depois da aprendizagem de algumas técnicas de relaxamento, o paciente é exposto a estímulos ansiogénicos de forma gradativa, o paciente vai relatando ao terapeuta o que está a sentir à medida que os estímulos lhe são apresentados (normalmente utilizam-se diapositivos).

Quando a ansiedade produz mau estar significativo, o paciente informa o terapeuta levantando por exemplo o braço e este suprime a exposição e volta às técnicas de relaxamento. O processo vai decorrendo até que a ansiedade seja suprimida ou possa ser gerida com alguma eficácia pelo paciente.

As técnicas de biofeedback, são também utilizadas. Neste caso, existem instrumentos que permitem a monitorização pelo terapeuta, quer do ritmo cardíaco, quer de doutras funções fisiológicas.

FB

domingo, 21 de março de 2010

Tenho medo...

Tenho medo que me faltem os abraços,
Que os dias passem iguais, sem sal, sem cor,
Tenho medo das sombras, dos meus passos,
De perder-me e perder o meu amor.

Tenho medo de mim por ser cativo
De um desejo maior que desconheço,
Tenho medo que Ele seja só castigo
E de mim não cuide se o mereço.

Ah! Se Tu me viesses consolar
Deste temor que carrego cada dia,
E a minha alma em Ti acreditar;

Que ter medo não é coisa fatal,
É sonho breve, instante de agonia,
Que acontece a quem é imortal!

Fernando Barnabé


terça-feira, 16 de março de 2010

Para lá de mim


Para lá de mim, só o orvalho das estrelas
e a ternura; a ternura convexa de um ventre pulsante.

Para lá de mim, só o sangue das flores,
o alvor de um olhar e a alma do sonho.

Para lá de mim, só o canto,
a melodia do vento e a fome voraz dos ribeiros.

Para lá de mim, só o espanto,
um sorriso de criança e o voo sereno do coração dos pássaros.


Fernando Barnabé

quinta-feira, 11 de março de 2010

Não mates o amor…

Não mates o amor...di-lo.
Di-lo ao vento, grita-o pelos campos ou deixa que a pomba leve a tua mensagem, se ainda tens coragem para voar(amar).
O amor deve dizer-se...
O amor deve cantar-se...
Mesmo que não encontre eco...
Mesmo que a pomba se esgote na viagem e não regresse mais ao seu beiral.


Fernando Barnabé

quarta-feira, 10 de março de 2010

À espera...



Se eu pudesse apagar de uma assentada
As feridas profundas do viver
Sentiria a alma iluminada
E esta dor que trago esmorecer

Mas não fui eu que escolhi esta jornada
Alguém a fez por mim acontecer
E se alguma vez pensei que a dominava
Outra vontade se impunha ao meu querer

Olha p´ra mim oh ser supremo!
Tu que és sal, és sol e vil veneno
E dá-me um só sinal; subtil, fugaz

De que no jogo do deve e do haver
Eu possa nesta vida entrever
Que o saldo que me resta é luz, é paz!

Fernando Barnabé

segunda-feira, 8 de março de 2010

Mulher/mãe



Hoje comemoramos o dia Internacional da Mulher; queria apenas deixar aqui uma homenagem a todas as mulheres e mães deste nosso lar que teimamos em não cuidar devidamente.



Ainda me lembro do teu colo;

Ninho de braços feito;

Donde cair não tinha medo.

Que fortes eram os teus braços;

Apesar da fome que passaste.

De onde te vinha a força mulher coragem;

Tu que nem menina foste?

Cresces-te à pressa para que eu vivesse;

Mas deste-me o teu coração de criança;

Coração verdade, que todos os dias me alimenta.


FBarnabé

Ainda o teste de Rorschach…



No post anterior, aquando da abordagem ao teste de Rorschach, referi que os métodos projectivos utilizados em Psicologia, têm como finalidade, apreender a realidade psicológica do sujeito, isto é o modo como ele vive e como se pensa.

Mas penso ser oportuno considerar aqui, as questões relativas à objectividade/subjectividade quando, como profissionais, utilizamos determinados testes.

Sabemos que psicólogos há, que rejeitam as técnicas projectivas por considerarem que estas não são objectivas e, como tal, utilizam as técnicas psicométricas. No entanto podemos afirmar que a pessoa sujeita a estas testes, como que desaparecem por detrás da quantificação, quer dizer, são reduzidas a um número. Dou-vos um exemplo; será importante e determinante que um determinado sujeito obtenha um resultado óptimo num teste de memória se o indivíduo utiliza essa sua competência de uma forma defensiva?

A psicometria está relacionada com os instrumentos de medida objectiva. A subjectividade, por seu lado, é baseada na intuição e, por vezes, com desprezo pelas técnicas objectivas, o que também é condenável.

A intuição é um dom fundamental, que emana do inconsciente, mas não nos podemos focalizar apenas na intuição, devemos ter também em consideração os métodos objectivos, e, para que nos possamos orientar correctamente, devemos ter uma teoria, um modelo que sustente o nosso pensamento e uma metodologia e instrumentos compatíveis entre si. Não é possível termos como modelo uma teoria psicanalítica e trabalharmos com uma metodologia comportamentalista.

A verdadeira objectividade, não existe por si só, existem sim, indicadores. Toda a realidade externa é investida à luz da nossa própria história e é aqui que se insere as técnicas de Rorschach.

A subjectividade baseia-se na interpretação e corre o risco de se arrastar por movimentos projectivos por parte do analista. A interpretação tem pois, que ser sustentada por provas, sob pena de o sujeito se tornar uma “colónia do nosso pensamento”.

O trabalho psicológico está muito enraizado na experiência psicopatológica; há uma grande necessidade de concluir e de apresentar resultados a todo o custo à luz da Psicopatologia, mesmo por vezes não percebendo em profundidade um determinado caso. Isto é deontologicamente incorrecto; nestes casos devemos, quando dúvidas existem, recorrer a colegas, a fim de podermos confrontar ideias e aclararmos o que à partida se nos afigura pouco revelador.

É pois importante perceber no Rorschach, o encadeamento das respostas do paciente, saber quais são os seus processos de pensamento, as associações que em regra utiliza; as respostas a estas questões é que nos leva a conhecer o sujeito e a procurar a sua individualidade.

Examinar as modalidades dominantes da personalidade do sujeito numa perspectiva de adaptação à realidade externa, é pois, uma função determinante do analista que deve estar despido de pré-conceitos, a fim de não incorrer em julgamentos prévios.

Devemos perspectivar-nos no sentido do “não saber”, para que não confirmemos uma ideia pré-estabelecida.

Não podemos deixar que a “colonização do sujeito” alimente a omnipotência do analista. É que uma espécie de novo riquismo intelectual pode tornar perigosa toda e qualquer interpretação.

Fernando Barnabé

sexta-feira, 5 de março de 2010

Os testes projectivos - o Rorschach (I)



Dando seguimento às matérias anteriores sobre o exame psicológico e a anmnese, gostaria de vos deixar aqui, algumas impressões, sobre os testes utilizados mais vulgarmente em Psicologia Clínica, destacando as técnicas projectivas, utilizadas pelos psicólogos como coadjuvantes da Entrevista Clínica, que não é mais do que uma súmula de todos os aspectos relevantes que ele foi capaz de recolher do sujeito, quer através da observação quer através de atenta escuta.

Os testes projectivos baseiam-se num mecanismo psicológico denominado “projecção”. Parte-se do princípio que todos nós, perante um desenho, uma mancha, um borrão, temos algo a dizer sobre ele, isto é, interpretamos o material dado, conforme a nossa estrutura psicológica. Estamos, com esse movimento, a projectar-nos, a dar indicações preciosas ao psicólogo sobre a nossa estrutura da personalidade; personalidade que deve ser vista como uma unidade integrativa.

Um dos testes projectivos mais utilizados na clínica é sem dúvida o teste de Rorschach, psiquiatra suíço que o desenvolveu e aplicou em centenas de sujeitos. O teste consiste em dar possíveis interpretações a dez pranchas com manchas de tinta simétricas em que a partir das respostas obtidas é possível obter um quadro amplo da dinâmica psicológica do indivíduo; não esqueçamos porém, que as qualidades psicológicas do testador têm importância nos resultados. Em suma, o processo de resposta produz-se num contexto em que a interacção e a intersubjectividade estão sempre presentes.

Quando utilizamos o conceito “projecção” ele surge sempre associado à percepção. O estímulo externo é a mancha que tem características perceptivas precisas mas ambíguas. Estas características vão obrigar o sujeito a estabelecer um conjunto de estratégias onde a percepção ocupa um lugar central. Na presença do cartão, o sujeito movimenta-se entre o real e o imaginário, entre o objectivo e o subjectivo.

Os dez cartões da prova de Rorschach, têm características singulares no campo perceptivo, pelo seu carácter unitário ou disperso, sendo susceptíveis de uma criação simbólica centrada em dois eixos: a representação de si e a representação da relação. É justamente pela forma como o sujeito organiza a história em torno das manchas impressas nos cartões, que ele revela a sua problemática fundamental. Percepção e projecção surgem então muito relacionadas, participando na delimitação do MUNDO EXTERNO e INTERNO do sujeito e na sua REPRESENTAÇÃO.

O processo projectivo leva a que só sejam investidas pelo sujeito certas excitações que reactivam traços mnésicos individuais; há uma selecção de estímulos que são integrados no seu sistema pessoal.

Cada um de nós filtra a realidade diferentemente e fá-lo de acordo com motivações pessoais. É a realidade externa, aquilo que percebemos, que vem reactivar os traços mnésicos que referi acima, dando lugar posteriormente ao respectivo movimento projectivo. O sujeito tem que mobilizar-se para ordenar as percepções externas e internas. É possível que o psicólogo assista a oscilações, movimentos subtis entre a percepção e a projecção; há como que uma negociação entre o dentro e o fora. O produto expresso pelo sujeito mostra igualmente uma ressonância fantasmática. A realidade externa, colorida com essa ressonância fantasmática gera um equilíbrio entre o dentro e o fora.

É através do estímulo (cartão) que o sujeito mergulha do processo primário para o processo secundário (o pensamento através da palavra), sendo que o imaginário é aqui extremamente importante. No teste é dito ao sujeito que não existem respostas certas nem erradas e que tem toda a liberdade quanto ao número de respostas a dar (normalmente dá duas respostas). Essas respostas tem um suporte perceptivo, mas espera-se que o sujeito as enriqueça com a sua capacidade de sonhar de imaginar, de ser criativo.

A cotação do teste é um processo um pouco moroso, obedecendo a algumas regras, (que dada a sua complexidade não vou aqui referir) que não podem deixar de ser consideradas, de forma a que a subjectividade do psicólogo, possa, na medida do possível, não interferir significativamente no diagnóstico.

* A imagem associada não representa um cartão do teste de Rorschach

Fernando Barnabé

terça-feira, 2 de março de 2010

Mal me quer...Bem me quer



Saiu de casa com a raiva estampada no rosto. Enquanto caminhava, repousava o olhar nas pedras da rua, pensando de si para si que merecia melhor sorte. Aquela casa não era mais a sua casa, aliás nunca o fora. O passado era o seu presente e o futuro vago e incerto. Felizardo não esquecia. Pousou o corpo titubeante num banco de jardim olhando para o alto, as estrelas não lhe respondiam e há muito que a sua se apagara. Soltou um grito lancinante, misto de desespero e de impotência e ficou mudo de repente esperando alguma resposta. Ninguém o escutara.

Conhecia o ruído vindo da porta. Quase todas as noites o esperava. Enquanto não o ouvia ia antecipando a dor. Felizardo, pequeno corpo a afundar-se no colchão, pressentia já os passos incertos que carregavam a culpa e a vergonha. Eram como
vergastas que a alma aceitava chorando, no entanto, os seus olhos, raramente o deixavam perceber. Vivos e penetrantes, fugiam a qualquer olhar observador, talvez com medo que descobrissem por detrás do seu brilho a culpa e a vergonha que não eram suas.

A chave depois de várias tentativas encontrava a ranhura, a porta abria-se e Felizardo parecia mirrar por debaixo dos lençóis. Não precisava olhar, já sabia quem entrara, donde vinha e como vinha. As cenas que se seguiriam não lhe eram estranhas; sempre iguais no drama, pareciam de um filme, mas este era real, demasiado real para ser acompanhado com pipocas e coca cola. Tristão, envolto em vapores etílicos tentava fechar a porta de mansinho, na inocência de que, com um pouco de sorte, não se faria notar. Amargurada, sentada na cama, na sua postura de vítima-carrasco, há muito que o pressentira, e a raiva, que durante a espera armazenara, explodia sobre Tristão queimando-o todo por dentro, muito mais do que o bagaço.

Era o preço a pagar por não ter sido criança. Aos treze já trabalhava para sustentar quatro bocas. Era dura a faina do mar, mas mais dura teria sido a pressa com que o fizeram crescer.

Agora era vítima de uma mulher-mãe que não lhe perdoava os deslizes, que o tratava como uma criança mal comportada sem perceber a impotência de alguém que só pedia compreensão.

Regressava a casa alegre, meio entorpecido é certo, mas alegre, trazendo consigo o sono e o cansaço. Parecia um menino grande com medo que a mulher-mãe lhe ralhasse. - Amaldiçoado, desgraçado, bandido, não tens vergonha nessa cara amaldiçoaaaado. Outra vez o bagacinho, não é verdade. Ah! grande desgraçado. Tristão levantou o braço, os lábios crispados e os olhos em alvo faziam antever um massacre.
Subitamente estacou como se uma voz interior lhe segredasse a calma. Olhava-a em silêncio, um pouco perdido, como se lhe pedisse desculpa pela traquinice; em troca, recebia mais uma sova de chorrilhos e um açoite de lágrimas, tão grande, que se deitava de costas p’ra ela engolindo a dor por mais uma ou duas horas, o tempo de duração da
ladainha.

Tristão não queria magoá-la, ela era frágil e ele uma muralha sem ameias nem guardas. Depois adormecia. Toda uma noite sem sonhos.

Tristão, não voltaria a beber nos próximos dias e Amargurada não teria oportunidade de descarregar sobre ele toda a frustração de uma união a que não soube escapar.

Os dias que se seguiam à bebedeira eram de paz, uma paz podre, de silêncios frios e cavados acompanhados dos olhares inquisidores de Amargurada. Era nesse tempo de tréguas que Felizardo mais sentia avolumar-se sobre os ombros o peso de duas vidas que não eram. Sentia que era fruto do desamor e joguete das frustrações de dois seres imaturos e insensíveis.

Quantas vezes, quase sempre às refeições, não caíram sobre si as mãos grossas e calejadas do pai-mandado só porque alguém tinha que pagar com lágrimas aquela “paz”? Quantas vezes não saíra correndo da mesa e se largava na cama, à espera de que alguém o viesse confortar. Quantas vezes desejou que a mulher-mãe e o pai-mandado fossem tão somente mãe e pai. Mas o pior de tudo, era quando na sua dor desejava apenas não desejar.

Amargurada toda vestida de branco entrava na igreja. Cá fora a chuva fustigava a calçada impiedosamente. “Casamento molhado, casamento abençoado” diz o povo e sem razão. Dias depois o arrependimento, o desencanto, a revolta amordaçada, a tristeza e por fim a resignação. Beijar Tristão, ter relações com Tristão, lavar a roupa a Tristão, passar a ferro a roupa de Tristão, fazer comer p’ra Tristão.

Amargurada não amava Tristão, soube-o sempre. Aquele que amava fora afastado pela razão. A segurança que a previsibilidade de carácter de Tristão auferia fê-la decidir. Amargurada tinha agora por companheira uma ferida funda e implacável, dádiva de um sim numa manhã chuvosa. Felizardo sentia-se doente, muito doente; o corpo, parecia definhar dia após dia, e os olhos, que outrora reflectiam a luz do seu imaginário, carregavam agora anos de tristeza. Sentado no banco de jardim, olhava ainda as estrelas.

Cansado da espera, resolveu tomar o caminho de casa. O seu quarto era um arremedo de refúgio, doze metros quadrados muitas vezes percorridos num vaivém de passos sincopados. Não, não era um refúgio, era mais uma prisão, onde secretamente planeava a fuga. Abriu a janela e contemplou uma vez mais as estrelas, sabia que só elas o poderiam curar.

Tinha já os cabelos pintados p’lo tempo apesar de ainda jovem. Tristão era um homem alto e magro, uma magreza que escondia uma vitalidade e força descomunais. O andar emprestara-o ao filho, e o porte era rígido, quase austero. Tristão tinha por costume visitar todas as “capelinhas”. Ali sentia-se melhor do que em casa. Com dois ou três copos a língua soltava-se, o corpo adquiria uma moleza natural e os olhos sorriam a bom sorrir. Tristão adorava aquelas capelinhas e o que elas tinham para oferecer. Era o seu lugar de culto, onde adormecia o corpo e a alma.

Felizardo não conseguia adormecer, aquela ideia insistia tanto, tanto, que de bom grado a cortaria pela raiz. Mas ela sobrepunha-se à sua vontade, era forte e persistente, qual erva daninha devastando-lhe o corpo e a alma. Sentou-se na cama derrotado pela arma que ele próprio fabricara. Por vezes dava-lhe tréguas, como se tivesse sido acalmada por qualquer génio que desconhecia, outras vezes surgia como vaga imensa, inundando-o de angústia e desespero. Felizardo era um barco à deriva que já só queria naufragar.
- Vai ver onde está o teu pai e chama-o para vir jantar. Gritou-lhe Amargurada, amarga e fria.

Felizardo nos seus calções puxados por suspensórios entristecia.
Não entrava nas tabernas, ficava cá fora esperando pacientemente que o olhar do pai se fixasse no seu. A espera doía, doía muito e Felizardo acabava por entrar. Puxava-lhe
pelo braço. – Pai estamos à tua espera p’ra jantar. - Diz à mãe que eu já vou; não demoro nada.

Felizardo sabia que era mentira, ele iria demorar. Jantaria com Amargurada, sozinho com os seus pensamentos. Já se via deitado, mãos frias e húmidas, coração apertado batendo a descompasso. Ruído na porta, o pai chegava. Felizardo morria mais um pouco…

Dias antes do casamento Amargurada saíra às compras com o pai. Na cidade escolhia os sapatos que levaria para o altar. – Queria aqueles pai, está a ver, aqueles brancos, são tão bonitos. Os olhos reluzentes encaravam em simultâneo o pai e os sapatos. – São vinte e cinco escudos, pai. Ontem a faina da pesca foi boa, não foi pai? Compramos? gostava tanto! O pai não lhe respondeu. Ao invés entrou com um ar decidido na loja. – Minha senhora, quero aqueles sapatos brancos que estão ali ao canto da montra. Pagou; tinham custado quinze escudos. Amargurada engoliu as lágrimas e uma raiva súbita tomou-lhe todo o ser. Odiava-o.

Foram viver num quarto assim que chegaram à cidade. Tristão deixara a faina do mar. Procurava outras paragens e nelas um porto seguro onde se abrigasse do ritmo infiel das ondas, do destempero das noites, e do queixume das redes. A mudança não foi dolorosa.

Passava os dias a namorar o mar e os barcos à espera da aventura de navegar. O namoro deu lugar ao compromisso e o compromisso ao salário. Tristão podia pagar o quarto e
apagar da memória a tristeza dos dias, em que, Amargurada, com Felizardo nos braços, derramava no seu ombro a angústia da espera. Lembrava-se ainda de, com o pouco que ganhara, ver correr Amargurada na ânsia de aliviar as dores do seu frágil rebento. Corria para outro cais. A espera, sempre a espera. Depois era dar-lhe os medicamentos na pressa do milagre; lembrava-se...Felizardo sobreviveu.

Amargurada esperava-o sentada num banco do jardim. Felizardo, descia a escadaria da escola, pulando os degraus quatro a quatro com a leveza de uma pena. Veloz, correu até junto de Amargurada.
- O que trazes hoje mãe? Amargurada retirou de um saco uma marmita ainda quente. - Trago-te galinha com esparguete, uma sopinha de espinafres e uma bananinha. Felizardo comia, devorava. Depois, olhava-a em silêncio. Depois, falava-lhe em
silêncio: - És a única mãe que vem trazer o almoço à escola.
Queria agradecer-lhe, mas não tinha coragem, queria abraçá-la mas faltava-lhe a coragem, queria beijá-la, mas não tinha ... Era isso, faltava-lhe fazer soltar as palavras, faltava-lhe dizer que a amava, faltava-lhe dizer que ela o salvara. Faltava tanta coisa...

Os dias de Verão eram os melhores dias. Ainda agora os recordava com alguma nostalgia. Mas a ideia com que ficava era a de que já não se faziam dias como aqueles.

Os verões da sua juventude, tinham um sabor e cheiro característicos, sabiam a mar e a vento, um vento bom, de afago cálido, que não tinha pressa em demorar-se. Ficava por
todo o Verão distribuindo aromas e fazendo as delícias dos mais velhos, que sentados nos poiais das casas caiadas, sussurravam confidências num ritmo letárgico imposto pelo Sueste. Naquela altura não se compravam férias, não havia, nem pizzas, nem hamburgers, nem coca-cola, nem carros nem yates, as pessoas estavam vivas e aquela terra, o mar, a brisa, o voo da gaivota, o sabor do pão, o tlin tlão do sino da igreja, o murmúrio das ondas eram de verdade. Felizardo sorria.

O sentimento inquietante de que não passava de um fardo causava-lhe um desconforto insidioso. Felizardo entrava na idade adulta, tinha deixado os estudos, um curso penoso que no entanto fez por acabar com aproveitamento. Tinham passado três longos anos sem que o esforço a que se submetera por causa do dito tivesse qualquer aplicabilidade. - Chulo. Gritava-lhe Amargurada. Há três anos que não fazes nada. É só comer e dormir. Vê lá se vais procurar trabalho, meu chulo, ou pensas que isto é algum hotel?

Felizardo calava uma revolta tamanho do mundo, fora ela quem lhe escolhera o famigerado curso, apesar das advertências da directora da escola. – O seu filho, D. Amargurada, tem muito jeito para letras, é um rapaz com sensibilidade para as línguas.
Era bom que fosse estudar para o liceu.

Amargurada não sabia o que era isso de letras, o importante era manter o espírito de rebanho, um curso técnico pois então, lá na rua não se falava noutra coisa e diziam que dava bom dinheiro.

Tinham passado dois longos dias sem que Felizardo desse notícias. Nunca tal tinha acontecido. Amargurada, lívida, chorava. Tristão aflito com a aflição dela procurava transmitir-lhe alguma calma, mas, até ele, a quem nunca se vira uma lágrima, procurava com esforço disfarçar um soluço. - Ele andava estranho, eu bem te dizia que ele não estava bem. Andava a comer mal, de manhã para se levantar era um castigo, mal nos falava... Vou ligar para os hospitais, mais uma vez. O que será feito dele, do meu rico filho... E chorava um choro que parecia habitar qualquer caverna funda. Um choro arrancado de um peito que não podia ser o seu, tamanha era a dor. Tristão, abraçava-a e chorava com ela.

Tinha-a conhecido há dois dias, enquanto vagueava em silêncio pela cidade, perdido em pensamentos. Sentara-se sem vontade numa esplanada. As pessoas saíam à pressa dos empregos, passando por ele numa vertigem de atropelo. Podia vê-las, mas não as olhava. Causava-lhe nauseas aquela pressa e até o coração parecia bater ao ritmo do galope dos passos - Tens um cigarro? Felizardo não respondeu, porque absorto no nada, há muito que dali se desprendera.

Uma mão fina, pousou-lhe no ombro, Felizardo virou-se.
- Tens um cigarro? - Não fumo, mas ali em frente tem uma máquina, respondeu-lhe com secura. Ela levantou-se de mansinho, como se fizesse um esforço para não cair. Lançou-lhe um sorriso que mais parecia um esgar e dirigiu-se à máquina. Ele ficou a observá-la, absorto na sua graciosidade. Era alta e magra, aparentando ter pouco mais que vinte anos, pele clara e bem tratada, olhos azuis cintilantes, provocadores. Era uma menina de bem, daquelas que passam a vida a gastar o dinheiro dos pais, pensou.

Ela aproximou-se. – Incomodo-te? Ele não respondeu. – És sempre assim tão simpático? Eu não mordo, só procuro alguém com quem falar. Sempre é melhor do que andar a fazer asneiras.

A última frase deixou-o pensativo e curioso. – Não, não incomodas, senta-te.

Sentou-se, satisfeita pensando que quem não arrisca não petisca. Estiveram algum tempo em silêncio mirando-se mutuamente.
- Que asneiras? perguntou ele.
- Para além de simpático também és curioso, ironizou.
Ela aparentava boa disposição, mas não lhe parecia natural. Aquela euforia era estranha, quase roçando o bizarro. Felizardo não lhe respondeu. Olhou-a fixamente nos olhos. Ela já não sorria. Os olhos dela entristeciam, de cada vez que ele persistia em olhar. Alguma coisa se passava com ela porque de súbito uma lágrima rolou, e mais outra e outra ainda. Felizardo, sentiu-se mal. Há muito que sabia que o seu olhar inquisidor afastava e não unia. Apressou-se a rectificar.
- Desculpa, é que eu sou mesmo assim, um pouco bicho do mato.
- Não precisas desculpar-te, eu é que não estou bem... queria... queria morrer.

Felizardo, visivelmente embaraçado, pensou que aquilo não poderia estar a acontecer, ele era a única pessoa no mundo que desejava morrer, não poderia haver outra.
- Não chores... nem sei o teu nome.
- Inês... chamo-me Inês. Ela recolhia as lágrimas, enquanto ele num gesto rápido se levantou.
- Vem Inês, vamo-nos daqui.

Lentamente e em silêncio foram percorrendo o caminho que os levava ao rio. Ela deixou-se conduzir, ele gostou. Felizardo comprou dois bilhetes e juntos entraram no
barco que os levaria à outra margem. No convés, entre azuis, a cidade desaparecia lentamente. Inês adquiria uma inexplicável serenidade. - Ainda não sei como te chamas, perguntou ela.
- Felizardo, filho de Tristão e Amargurada, ao seu dispor, sorriu.
- Estás a brincar... parecem nomes de novela, gracejou.
Felizardo fixou o olhar na outra margem. Ela foi sentar-se num banco da popa, ele acompanhou-a.
- Sabes, nunca tinha feito esta travessia. Sinto-me bem aqui. É tão agradável esta aragem. Vendo afastar-se a cidade sinto uma espécie de alívio. É como se tivesse lá deixado…Felizardo olhou-a com ternura. Ela prosseguiu.
- Tenho medo do regresso. Se pudesse não voltava a casa nunca mais. Felizardo continuava a olhá-la num misto de curiosidade e impaciência, queria conhecer a sua história, mas manteve-se em silêncio.

Iam a meio da viagem. O rio a poente ruborescia e a cidade ao longe parecia-lhes possuída por um estranho encantamento.
Inês suspirou. - Ali onde o Sol se põe, à direita é onde eu moro. Vivo com os meus pais. Foram de férias, mas cada um para seu lado. Há já algum tempo que é assim. Dantes éramos tão unidos... Estão juntos, só para manter as aparências. Se te disser que passam dias sem que os veja possivelmente não acreditas. Ela é médica, sai de casa muito cedo e entra a altas horas da noite, às vezes não regressa, mas não é pelos seus afazeres. O meu pai passa a vida no estrangeiro, são os negócios... Felizardo redobrava de atenção, quis acariciar-lhe as mãos, mas pensou que seria desagradável dar-lhe a perceber a humidade das suas.

Ficaram lado a lado em silêncio.

A cidade desaparecera já, e o barco, vagarosamente, encurtava a distância que os separava da margem. - Sentes-te melhor agora? Perguntou Felizardo. - Sim, mas ainda estou sobre o efeito... sabes é que eu... Baixou a cabeça com ares de culpa desejando que ele tivesse percebido tudo. O medo da rejeição saía-lhe pelos poros, percebia-se pela postura, notava-se-lhe na voz. Felizardo lançou-lhe os braços, e ela, num suspiro longo e profundo, abraçou-o como um náufrago.

Assim ficaram durante algum tempo, corpo e alma em comunhão.

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