quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

O Álibi


- “Isso até nem é um grande problema. Se vier a acontecer, tenho um bom álibi.” Foi essa a sua resposta. Perguntei-lhe surpreso a que álibi se referia e fiquei nesse momento num estado de alguma inquietude. Fixei-me na sua expressão facial. Da boca desprendia-se um sorriso macabro de quem tem em mente uma ideia diabólica há muito engendrada; do olhar, sinais de indisfarçável provocação.

Tentei não reagir de imediato e esbocei um sorriso na tentativa de dissimular o assombro. O assunto de que tínhamos estado à conversa, era sério, demasiado sério para ser tratado com leviandade. Tinha à minha frente alguém gravemente perturbado e o caso exigia atenção redobrada.

O discurso era ardiloso, enigmático, ziguezagueante, feito de omissões e incongruências e aquele esgar; sim, porque não era na verdade um sorriso, encerrava alguma malignidade; aquela malignidade travessa a precisar de um açoite.

“ Posso sempre dizer que me piquei numa agulha”. E o esgar acompanhou a frase, deixando perceber uma qualquer perversidade inconsciente. Percebi no momento que não era apenas o prazer que a movia. O seu mundo hedonista estaria subjugado a uma necessidade maior que jazia funda e insondável, como metástase galopante e invisível.

Fitei-a, com um olhar grave e perguntei-lhe se tinha consciência do que me estava a dizer.
“ Claro que tenho, ou pensa que sou estúpida”. “Não vou nem quero prescindir dos meus desejos e fantasias sexuais; tenho prazer no que faço e como o faço” prosseguiu.

- "E a sua família? Os seus filhos e pacientes que têm de si uma imagem sem mácula de mãe e de cuidadora? Não são importantes para si? Não a preocupa o facto de que algo grave lhe possa acontecer? De os deixar sós e indefesos porque não lhe dá prazer ter relações protegidas?" Perguntei.

A cabeça altiva e o olhar provocador esconderam-se, ofuscados por alguma réstia consciente, quem sabe se ateada pelas minhas derradeiras palavras. Ficou imóvel por alguns momentos; momentos que senti eternos e indescritíveis. O tronco dobrava-se-lhe sobre o regaço e o seu corpo elegante e belo parecia definhar a um ritmo alucinante. Sentia-a agonizar como besta atingida por letal veneno.

Os olhos em alvo, agora mortiços pareciam expressar uma dor antiga - a dor de uma alma condenada.

Não interrompi o momento, apenas fiquei a olhá-la mudo e quieto observando incrédulo a sua metamorfose. Depois, abracei a sua dor, e, no mesmo instante, senti-me envelhecer pelo peso desmedido daquela "maldição".


Fernando Barnabé

3 comentários:

  1. Passei para te deixar um abraco. Bom fim de semana

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  2. Um abraço também para ti Francisco. Bom fim de semana. Gostei muito do teu texto...sempre a mil!:)

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  3. Ola! Hoje em dia nem a 500, meu amigo. Vivendo e aprendendo. Bem, aprendendo e "domando" os instintos. Nessa parte tive alguem que me deu um grande impulso. Um daqueles "anjos" na terra que me apereceu um dia e me fez olhar para a vida de outra forma. Isso devo-lhe. Um forte abraco para ti.

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