terça-feira, 2 de março de 2010

Mal me quer...Bem me quer



Saiu de casa com a raiva estampada no rosto. Enquanto caminhava, repousava o olhar nas pedras da rua, pensando de si para si que merecia melhor sorte. Aquela casa não era mais a sua casa, aliás nunca o fora. O passado era o seu presente e o futuro vago e incerto. Felizardo não esquecia. Pousou o corpo titubeante num banco de jardim olhando para o alto, as estrelas não lhe respondiam e há muito que a sua se apagara. Soltou um grito lancinante, misto de desespero e de impotência e ficou mudo de repente esperando alguma resposta. Ninguém o escutara.

Conhecia o ruído vindo da porta. Quase todas as noites o esperava. Enquanto não o ouvia ia antecipando a dor. Felizardo, pequeno corpo a afundar-se no colchão, pressentia já os passos incertos que carregavam a culpa e a vergonha. Eram como
vergastas que a alma aceitava chorando, no entanto, os seus olhos, raramente o deixavam perceber. Vivos e penetrantes, fugiam a qualquer olhar observador, talvez com medo que descobrissem por detrás do seu brilho a culpa e a vergonha que não eram suas.

A chave depois de várias tentativas encontrava a ranhura, a porta abria-se e Felizardo parecia mirrar por debaixo dos lençóis. Não precisava olhar, já sabia quem entrara, donde vinha e como vinha. As cenas que se seguiriam não lhe eram estranhas; sempre iguais no drama, pareciam de um filme, mas este era real, demasiado real para ser acompanhado com pipocas e coca cola. Tristão, envolto em vapores etílicos tentava fechar a porta de mansinho, na inocência de que, com um pouco de sorte, não se faria notar. Amargurada, sentada na cama, na sua postura de vítima-carrasco, há muito que o pressentira, e a raiva, que durante a espera armazenara, explodia sobre Tristão queimando-o todo por dentro, muito mais do que o bagaço.

Era o preço a pagar por não ter sido criança. Aos treze já trabalhava para sustentar quatro bocas. Era dura a faina do mar, mas mais dura teria sido a pressa com que o fizeram crescer.

Agora era vítima de uma mulher-mãe que não lhe perdoava os deslizes, que o tratava como uma criança mal comportada sem perceber a impotência de alguém que só pedia compreensão.

Regressava a casa alegre, meio entorpecido é certo, mas alegre, trazendo consigo o sono e o cansaço. Parecia um menino grande com medo que a mulher-mãe lhe ralhasse. - Amaldiçoado, desgraçado, bandido, não tens vergonha nessa cara amaldiçoaaaado. Outra vez o bagacinho, não é verdade. Ah! grande desgraçado. Tristão levantou o braço, os lábios crispados e os olhos em alvo faziam antever um massacre.
Subitamente estacou como se uma voz interior lhe segredasse a calma. Olhava-a em silêncio, um pouco perdido, como se lhe pedisse desculpa pela traquinice; em troca, recebia mais uma sova de chorrilhos e um açoite de lágrimas, tão grande, que se deitava de costas p’ra ela engolindo a dor por mais uma ou duas horas, o tempo de duração da
ladainha.

Tristão não queria magoá-la, ela era frágil e ele uma muralha sem ameias nem guardas. Depois adormecia. Toda uma noite sem sonhos.

Tristão, não voltaria a beber nos próximos dias e Amargurada não teria oportunidade de descarregar sobre ele toda a frustração de uma união a que não soube escapar.

Os dias que se seguiam à bebedeira eram de paz, uma paz podre, de silêncios frios e cavados acompanhados dos olhares inquisidores de Amargurada. Era nesse tempo de tréguas que Felizardo mais sentia avolumar-se sobre os ombros o peso de duas vidas que não eram. Sentia que era fruto do desamor e joguete das frustrações de dois seres imaturos e insensíveis.

Quantas vezes, quase sempre às refeições, não caíram sobre si as mãos grossas e calejadas do pai-mandado só porque alguém tinha que pagar com lágrimas aquela “paz”? Quantas vezes não saíra correndo da mesa e se largava na cama, à espera de que alguém o viesse confortar. Quantas vezes desejou que a mulher-mãe e o pai-mandado fossem tão somente mãe e pai. Mas o pior de tudo, era quando na sua dor desejava apenas não desejar.

Amargurada toda vestida de branco entrava na igreja. Cá fora a chuva fustigava a calçada impiedosamente. “Casamento molhado, casamento abençoado” diz o povo e sem razão. Dias depois o arrependimento, o desencanto, a revolta amordaçada, a tristeza e por fim a resignação. Beijar Tristão, ter relações com Tristão, lavar a roupa a Tristão, passar a ferro a roupa de Tristão, fazer comer p’ra Tristão.

Amargurada não amava Tristão, soube-o sempre. Aquele que amava fora afastado pela razão. A segurança que a previsibilidade de carácter de Tristão auferia fê-la decidir. Amargurada tinha agora por companheira uma ferida funda e implacável, dádiva de um sim numa manhã chuvosa. Felizardo sentia-se doente, muito doente; o corpo, parecia definhar dia após dia, e os olhos, que outrora reflectiam a luz do seu imaginário, carregavam agora anos de tristeza. Sentado no banco de jardim, olhava ainda as estrelas.

Cansado da espera, resolveu tomar o caminho de casa. O seu quarto era um arremedo de refúgio, doze metros quadrados muitas vezes percorridos num vaivém de passos sincopados. Não, não era um refúgio, era mais uma prisão, onde secretamente planeava a fuga. Abriu a janela e contemplou uma vez mais as estrelas, sabia que só elas o poderiam curar.

Tinha já os cabelos pintados p’lo tempo apesar de ainda jovem. Tristão era um homem alto e magro, uma magreza que escondia uma vitalidade e força descomunais. O andar emprestara-o ao filho, e o porte era rígido, quase austero. Tristão tinha por costume visitar todas as “capelinhas”. Ali sentia-se melhor do que em casa. Com dois ou três copos a língua soltava-se, o corpo adquiria uma moleza natural e os olhos sorriam a bom sorrir. Tristão adorava aquelas capelinhas e o que elas tinham para oferecer. Era o seu lugar de culto, onde adormecia o corpo e a alma.

Felizardo não conseguia adormecer, aquela ideia insistia tanto, tanto, que de bom grado a cortaria pela raiz. Mas ela sobrepunha-se à sua vontade, era forte e persistente, qual erva daninha devastando-lhe o corpo e a alma. Sentou-se na cama derrotado pela arma que ele próprio fabricara. Por vezes dava-lhe tréguas, como se tivesse sido acalmada por qualquer génio que desconhecia, outras vezes surgia como vaga imensa, inundando-o de angústia e desespero. Felizardo era um barco à deriva que já só queria naufragar.
- Vai ver onde está o teu pai e chama-o para vir jantar. Gritou-lhe Amargurada, amarga e fria.

Felizardo nos seus calções puxados por suspensórios entristecia.
Não entrava nas tabernas, ficava cá fora esperando pacientemente que o olhar do pai se fixasse no seu. A espera doía, doía muito e Felizardo acabava por entrar. Puxava-lhe
pelo braço. – Pai estamos à tua espera p’ra jantar. - Diz à mãe que eu já vou; não demoro nada.

Felizardo sabia que era mentira, ele iria demorar. Jantaria com Amargurada, sozinho com os seus pensamentos. Já se via deitado, mãos frias e húmidas, coração apertado batendo a descompasso. Ruído na porta, o pai chegava. Felizardo morria mais um pouco…

Dias antes do casamento Amargurada saíra às compras com o pai. Na cidade escolhia os sapatos que levaria para o altar. – Queria aqueles pai, está a ver, aqueles brancos, são tão bonitos. Os olhos reluzentes encaravam em simultâneo o pai e os sapatos. – São vinte e cinco escudos, pai. Ontem a faina da pesca foi boa, não foi pai? Compramos? gostava tanto! O pai não lhe respondeu. Ao invés entrou com um ar decidido na loja. – Minha senhora, quero aqueles sapatos brancos que estão ali ao canto da montra. Pagou; tinham custado quinze escudos. Amargurada engoliu as lágrimas e uma raiva súbita tomou-lhe todo o ser. Odiava-o.

Foram viver num quarto assim que chegaram à cidade. Tristão deixara a faina do mar. Procurava outras paragens e nelas um porto seguro onde se abrigasse do ritmo infiel das ondas, do destempero das noites, e do queixume das redes. A mudança não foi dolorosa.

Passava os dias a namorar o mar e os barcos à espera da aventura de navegar. O namoro deu lugar ao compromisso e o compromisso ao salário. Tristão podia pagar o quarto e
apagar da memória a tristeza dos dias, em que, Amargurada, com Felizardo nos braços, derramava no seu ombro a angústia da espera. Lembrava-se ainda de, com o pouco que ganhara, ver correr Amargurada na ânsia de aliviar as dores do seu frágil rebento. Corria para outro cais. A espera, sempre a espera. Depois era dar-lhe os medicamentos na pressa do milagre; lembrava-se...Felizardo sobreviveu.

Amargurada esperava-o sentada num banco do jardim. Felizardo, descia a escadaria da escola, pulando os degraus quatro a quatro com a leveza de uma pena. Veloz, correu até junto de Amargurada.
- O que trazes hoje mãe? Amargurada retirou de um saco uma marmita ainda quente. - Trago-te galinha com esparguete, uma sopinha de espinafres e uma bananinha. Felizardo comia, devorava. Depois, olhava-a em silêncio. Depois, falava-lhe em
silêncio: - És a única mãe que vem trazer o almoço à escola.
Queria agradecer-lhe, mas não tinha coragem, queria abraçá-la mas faltava-lhe a coragem, queria beijá-la, mas não tinha ... Era isso, faltava-lhe fazer soltar as palavras, faltava-lhe dizer que a amava, faltava-lhe dizer que ela o salvara. Faltava tanta coisa...

Os dias de Verão eram os melhores dias. Ainda agora os recordava com alguma nostalgia. Mas a ideia com que ficava era a de que já não se faziam dias como aqueles.

Os verões da sua juventude, tinham um sabor e cheiro característicos, sabiam a mar e a vento, um vento bom, de afago cálido, que não tinha pressa em demorar-se. Ficava por
todo o Verão distribuindo aromas e fazendo as delícias dos mais velhos, que sentados nos poiais das casas caiadas, sussurravam confidências num ritmo letárgico imposto pelo Sueste. Naquela altura não se compravam férias, não havia, nem pizzas, nem hamburgers, nem coca-cola, nem carros nem yates, as pessoas estavam vivas e aquela terra, o mar, a brisa, o voo da gaivota, o sabor do pão, o tlin tlão do sino da igreja, o murmúrio das ondas eram de verdade. Felizardo sorria.

O sentimento inquietante de que não passava de um fardo causava-lhe um desconforto insidioso. Felizardo entrava na idade adulta, tinha deixado os estudos, um curso penoso que no entanto fez por acabar com aproveitamento. Tinham passado três longos anos sem que o esforço a que se submetera por causa do dito tivesse qualquer aplicabilidade. - Chulo. Gritava-lhe Amargurada. Há três anos que não fazes nada. É só comer e dormir. Vê lá se vais procurar trabalho, meu chulo, ou pensas que isto é algum hotel?

Felizardo calava uma revolta tamanho do mundo, fora ela quem lhe escolhera o famigerado curso, apesar das advertências da directora da escola. – O seu filho, D. Amargurada, tem muito jeito para letras, é um rapaz com sensibilidade para as línguas.
Era bom que fosse estudar para o liceu.

Amargurada não sabia o que era isso de letras, o importante era manter o espírito de rebanho, um curso técnico pois então, lá na rua não se falava noutra coisa e diziam que dava bom dinheiro.

Tinham passado dois longos dias sem que Felizardo desse notícias. Nunca tal tinha acontecido. Amargurada, lívida, chorava. Tristão aflito com a aflição dela procurava transmitir-lhe alguma calma, mas, até ele, a quem nunca se vira uma lágrima, procurava com esforço disfarçar um soluço. - Ele andava estranho, eu bem te dizia que ele não estava bem. Andava a comer mal, de manhã para se levantar era um castigo, mal nos falava... Vou ligar para os hospitais, mais uma vez. O que será feito dele, do meu rico filho... E chorava um choro que parecia habitar qualquer caverna funda. Um choro arrancado de um peito que não podia ser o seu, tamanha era a dor. Tristão, abraçava-a e chorava com ela.

Tinha-a conhecido há dois dias, enquanto vagueava em silêncio pela cidade, perdido em pensamentos. Sentara-se sem vontade numa esplanada. As pessoas saíam à pressa dos empregos, passando por ele numa vertigem de atropelo. Podia vê-las, mas não as olhava. Causava-lhe nauseas aquela pressa e até o coração parecia bater ao ritmo do galope dos passos - Tens um cigarro? Felizardo não respondeu, porque absorto no nada, há muito que dali se desprendera.

Uma mão fina, pousou-lhe no ombro, Felizardo virou-se.
- Tens um cigarro? - Não fumo, mas ali em frente tem uma máquina, respondeu-lhe com secura. Ela levantou-se de mansinho, como se fizesse um esforço para não cair. Lançou-lhe um sorriso que mais parecia um esgar e dirigiu-se à máquina. Ele ficou a observá-la, absorto na sua graciosidade. Era alta e magra, aparentando ter pouco mais que vinte anos, pele clara e bem tratada, olhos azuis cintilantes, provocadores. Era uma menina de bem, daquelas que passam a vida a gastar o dinheiro dos pais, pensou.

Ela aproximou-se. – Incomodo-te? Ele não respondeu. – És sempre assim tão simpático? Eu não mordo, só procuro alguém com quem falar. Sempre é melhor do que andar a fazer asneiras.

A última frase deixou-o pensativo e curioso. – Não, não incomodas, senta-te.

Sentou-se, satisfeita pensando que quem não arrisca não petisca. Estiveram algum tempo em silêncio mirando-se mutuamente.
- Que asneiras? perguntou ele.
- Para além de simpático também és curioso, ironizou.
Ela aparentava boa disposição, mas não lhe parecia natural. Aquela euforia era estranha, quase roçando o bizarro. Felizardo não lhe respondeu. Olhou-a fixamente nos olhos. Ela já não sorria. Os olhos dela entristeciam, de cada vez que ele persistia em olhar. Alguma coisa se passava com ela porque de súbito uma lágrima rolou, e mais outra e outra ainda. Felizardo, sentiu-se mal. Há muito que sabia que o seu olhar inquisidor afastava e não unia. Apressou-se a rectificar.
- Desculpa, é que eu sou mesmo assim, um pouco bicho do mato.
- Não precisas desculpar-te, eu é que não estou bem... queria... queria morrer.

Felizardo, visivelmente embaraçado, pensou que aquilo não poderia estar a acontecer, ele era a única pessoa no mundo que desejava morrer, não poderia haver outra.
- Não chores... nem sei o teu nome.
- Inês... chamo-me Inês. Ela recolhia as lágrimas, enquanto ele num gesto rápido se levantou.
- Vem Inês, vamo-nos daqui.

Lentamente e em silêncio foram percorrendo o caminho que os levava ao rio. Ela deixou-se conduzir, ele gostou. Felizardo comprou dois bilhetes e juntos entraram no
barco que os levaria à outra margem. No convés, entre azuis, a cidade desaparecia lentamente. Inês adquiria uma inexplicável serenidade. - Ainda não sei como te chamas, perguntou ela.
- Felizardo, filho de Tristão e Amargurada, ao seu dispor, sorriu.
- Estás a brincar... parecem nomes de novela, gracejou.
Felizardo fixou o olhar na outra margem. Ela foi sentar-se num banco da popa, ele acompanhou-a.
- Sabes, nunca tinha feito esta travessia. Sinto-me bem aqui. É tão agradável esta aragem. Vendo afastar-se a cidade sinto uma espécie de alívio. É como se tivesse lá deixado…Felizardo olhou-a com ternura. Ela prosseguiu.
- Tenho medo do regresso. Se pudesse não voltava a casa nunca mais. Felizardo continuava a olhá-la num misto de curiosidade e impaciência, queria conhecer a sua história, mas manteve-se em silêncio.

Iam a meio da viagem. O rio a poente ruborescia e a cidade ao longe parecia-lhes possuída por um estranho encantamento.
Inês suspirou. - Ali onde o Sol se põe, à direita é onde eu moro. Vivo com os meus pais. Foram de férias, mas cada um para seu lado. Há já algum tempo que é assim. Dantes éramos tão unidos... Estão juntos, só para manter as aparências. Se te disser que passam dias sem que os veja possivelmente não acreditas. Ela é médica, sai de casa muito cedo e entra a altas horas da noite, às vezes não regressa, mas não é pelos seus afazeres. O meu pai passa a vida no estrangeiro, são os negócios... Felizardo redobrava de atenção, quis acariciar-lhe as mãos, mas pensou que seria desagradável dar-lhe a perceber a humidade das suas.

Ficaram lado a lado em silêncio.

A cidade desaparecera já, e o barco, vagarosamente, encurtava a distância que os separava da margem. - Sentes-te melhor agora? Perguntou Felizardo. - Sim, mas ainda estou sobre o efeito... sabes é que eu... Baixou a cabeça com ares de culpa desejando que ele tivesse percebido tudo. O medo da rejeição saía-lhe pelos poros, percebia-se pela postura, notava-se-lhe na voz. Felizardo lançou-lhe os braços, e ela, num suspiro longo e profundo, abraçou-o como um náufrago.

Assim ficaram durante algum tempo, corpo e alma em comunhão.

FB

4 comentários:

  1. olá Francisco,

    Por onde andas tu...aqui no nosso cantinho?

    Forte Abraço

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  2. Tinha deixado um comentário, muito positivo a este texto, e que possivelmente, como já aconteceu, noutras ocasiões, não validei...
    Abraço.

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  3. Olá João,

    Um texto que de algum modo retrata alguns aspectos da minha vida...uns são na verdade bem reais, outros, pura ficção...

    Bom fim de semana!
    Abraço.

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