- “Isso até nem é um grande problema. Se vier a acontecer, tenho um bom álibi.” Foi essa a sua resposta. Perguntei-lhe surpreso a que álibi se referia e fiquei nesse momento num estado de alguma inquietude. Fixei-me na sua expressão facial. Da boca desprendia-se um sorriso macabro de quem tem em mente uma ideia diabólica há muito engendrada; do olhar, sinais de indisfarçável provocação.
Tentei não reagir de imediato e esbocei um sorriso na tentativa de dissimular o assombro. O assunto de que tínhamos estado à conversa, era sério, demasiado sério para ser tratado com leviandade. Tinha à minha frente alguém gravemente perturbado e o caso exigia atenção redobrada.
O discurso era ardiloso, enigmático, ziguezagueante, feito de omissões e incongruências e aquele esgar; sim, porque não era na verdade um sorriso, encerrava alguma malignidade; aquela malignidade travessa a precisar de um açoite.
“ Posso sempre dizer que me piquei numa agulha”. E o esgar acompanhou a frase, deixando perceber uma qualquer perversidade inconsciente. Percebi no momento que não era apenas o prazer que a movia. O seu mundo hedonista estaria subjugado a uma necessidade maior que jazia funda e insondável, como metástase galopante e invisível.
Fitei-a, com um olhar grave e perguntei-lhe se tinha consciência do que me estava a dizer.
“ Claro que tenho, ou pensa que sou estúpida”. “Não vou nem quero prescindir dos meus desejos e fantasias sexuais; tenho prazer no que faço e como o faço” prosseguiu.
- "E a sua família? Os seus filhos e pacientes que têm de si uma imagem sem mácula de mãe e de cuidadora? Não são importantes para si? Não a preocupa o facto de que algo grave lhe possa acontecer? De os deixar sós e indefesos porque não lhe dá prazer ter relações protegidas?" Perguntei.
A cabeça altiva e o olhar provocador esconderam-se, ofuscados por alguma réstia consciente, quem sabe se ateada pelas minhas derradeiras palavras. Ficou imóvel por alguns momentos; momentos que senti eternos e indescritíveis. O tronco dobrava-se-lhe sobre o regaço e o seu corpo elegante e belo parecia definhar a um ritmo alucinante. Sentia-a agonizar como besta atingida por letal veneno.
Os olhos em alvo, agora mortiços pareciam expressar uma dor antiga - a dor de uma alma condenada.
Não interrompi o momento, apenas fiquei a olhá-la mudo e quieto observando incrédulo a sua metamorfose. Depois, abracei a sua dor, e, no mesmo instante, senti-me envelhecer pelo peso desmedido daquela "maldição".
Fernando Barnabé
Passei para te deixar um abraco. Bom fim de semana
ResponderEliminarUm abraço também para ti Francisco. Bom fim de semana. Gostei muito do teu texto...sempre a mil!:)
ResponderEliminarOla! Hoje em dia nem a 500, meu amigo. Vivendo e aprendendo. Bem, aprendendo e "domando" os instintos. Nessa parte tive alguem que me deu um grande impulso. Um daqueles "anjos" na terra que me apereceu um dia e me fez olhar para a vida de outra forma. Isso devo-lhe. Um forte abraco para ti.
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